domingo, 1 de junho de 2014

familiar III



Tenho três filhas
no timbre 
da sua voz
na luz inquieta 
do seu olhar
na incrível subtileza 
do amor
à flor da pele
deixo-me ficar
embalado
pelo poema 
a decantar o sangue
espesso 
do afecto imperial
que desagua 
na moche
dos seus abraços.

Lisboa, 1 de Junho de 2014
Carlos Vieira




familiar II



Despertei
estremunhado
com a sensação 
de asas 
ou de um coração
a bater
fora de mim
ali estava 
a minha filha
esperando
pacientemente
que acordasse
desde esses tempos
que acredito
em anjos.

Lisboa, 1 de Junho de 2014

Carlos Vieira

familiar I



saudade
dos teus pés descalços
sorrateiros
pelas manhãs
na abordagem do leito
e de me cobrires de beijos
com manteiga

Lisboa, 1 de Junho de 2014

Carlos Vieira

Pétala


Da flor 
a pétala
arrancada
asa da dor
pele da sombra 
de onde 
se precipitou
a lágrima
e a abelha
pousou
de onde exala
um perfume amável
pétala pisada
pela inocente 
sandália de couro
da criança
atirada
pela brisa
contra a parede
e a solidão do beco
memória esquecida
de um beijo
deserto.

Lisboa, 31 de Maio de 2014
Carlos Vieira

sábado, 31 de maio de 2014

Habeas Corpus



O meu cárcere
é o meu corpo
e a minha falta de ar

é ao tomar banho
no poleiro de uma flutuante
um pássaro a cantar

estou preso a mim 
e se de ti me encanto
mais confinado me sinto

no peito labaredas
e nas paredes do estômago 
as borboletas de espanto

e se num golpe 
de asa e de inquietação
acima dos muros me levanto

logo vem a gravidade
da vida pôr termo à evasão 
e me puxar para o meu canto

e ao meu ouvido
me lembrar o meu lugar
a minha idade

a necessidade
de manter o que resta
do corpo que foi festa

a esperança e o sonho de vida
o mais tarde possível
me libertar do corpo prisão.

Lisboa, 31 de Maio de 2014
Carlos Vieira




quarta-feira, 28 de maio de 2014

Jardim de Inverno II



As plumas
macias
do seu chapéu
sobre o sobrolho
eram fustigadas
pelo vento
agreste
que se tinha
levantado.

A serenidade

dura 
do seu rosto
passou do alabastro
ao metal
irreconhecível
forjado
no fogo da paixão
de lágrimas
amargas
e da loucura.

Tudo aquilo

poderia
ser uma cabala
mulher felina
apanhada
na sua própria
armadilha.

Quem conheceu

aquela mulher
a sua bondade
constava
ser impossível
que pudesse
sobreviver
impassível
naquele gelo.

A eloquência

da sua carícia
a sua presença
etérea
evoca o íman 
efémero do olhar.
O meu puro 
pudor
diante da sua tez
de ouropel
húmida
do relento
as minhas mãos
a passar a toalha
com que a havia secado
à volta
da tua cintura
tão devagar
beijo a beijo
poro a poro.

Um pequeno lapso

deixa a dançar
no meu espírito
o pêndulo
da sua ida e vinda
perante
os meus dilemas
na paisagem sépia
do regresso
ao beijar
indolente
à sugestão
do teu perfume
em recônditas
passagens.


Lisboa, 28 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Hoje ao despertar



Hoje ao despertar
já estava morto
precisamente
agora que ia
começar 
uma nova vida
e que sabia
o que fazer.

Lisboa, 28 de Maio de 2014
Carlos Vieira