O poeta
é um bicho atento
a todos os sinais
ao ínfimo átomo da natureza
laborioso intérprete
de detalhes
outras vezes
é só sublime momento
uma viagem de pura tristeza
dos pequenos passos
e múltiplos apeadeiros
da humanidade
a enganar o tempo
dentro de si sonâmbulo
corre o sangue
de toda gente
e da que já se foi
e todas dores do mundo
do último sobrevivente
até ao seu derradeiro momento
fora de si não há arma
ou voz épica
ou artificiosa vírgula
estratégica subtileza
que o cale se furibundo
ou o afuguente
do seu manso retiro
o poeta
é o nada que se inflama
o fogo que a si próprio
se devora
de todos e cada um de nós
é emoção de um silêncio
de pó que se levanta
e que ao descer à terra
se reiventa
em decantada poesia
pigmento de pintor
renascentista
feitas de metal precioso
e de excremento
poeira eterna e exangue
sem contra-indicação
que corre no coração dos livros
por fim
miríade de partículas
colhidas nas horas mortas
suspensas das galáxias
em outras vidas
poeta
que de tanto intensamente
tudo querer viver
morre na penumbra
esquecendo-se pelas causas
de todos
da sua própria vida.
Lisboa, 3 de Maio de 2014
Carlos Vieira
"O poeta recompensado"
René Magitte