sábado, 3 de maio de 2014

Pó-esia


O poeta
é um bicho atento
a todos os sinais 
ao ínfimo átomo da natureza
laborioso intérprete
de detalhes
outras vezes
é só sublime momento 
uma viagem de pura tristeza
dos pequenos passos
e múltiplos apeadeiros 
da humanidade
a enganar o tempo
dentro de si sonâmbulo
corre o sangue
de toda gente 
e da que já se foi
e todas dores do mundo
do último sobrevivente
até ao seu derradeiro momento
fora de si não há arma 
ou voz épica 
ou artificiosa vírgula
estratégica subtileza
que o cale se furibundo 
ou o afuguente
do seu manso retiro
o poeta
é o nada que se inflama
o fogo que a si próprio 
se devora
de todos e cada um de nós
é emoção de um silêncio
de pó que se levanta
e que ao descer à terra 
se reiventa
em decantada poesia
pigmento de pintor
renascentista
feitas de metal precioso
e de excremento
poeira eterna e exangue
sem contra-indicação
que corre no coração dos livros
por fim 
miríade de partículas
colhidas nas horas mortas
suspensas das galáxias 
em outras vidas
poeta 
que de tanto intensamente
tudo querer viver 
morre na penumbra
esquecendo-se pelas causas
de todos
da sua própria vida.


Lisboa, 3 de Maio de 2014
Carlos Vieira


                                                             "O poeta recompensado"
                                                                      René Magitte

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Passeio poético



um cão ladra 
na rua sem parar

para o sem abrigo 
que se esconde

para a bicicleta 
e ciclista a pedalar

para o gato sereno 
no primeiro andar

para as crianças 
a brincar na relva

para a lua
no céu a brilhar

a adolescente triste 
insiste
em o mandar calar

puxa-lhe a trela 
cão que ladra 
não vai morder

apenas ladra
ladra lá fora
um poema 

que todo o dia
o esteve a sonhar
a remoer.

Lisboa, 2 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Foi julgado...

Foi julgado 
à revelia
e condenado,
na vida haverá
sempre um dia,
em que perdemos
por falta de comparência!

Lisboa, 2 de Maio de 2014

Carlos Vieira

Às voltas com um "casburro"



eis ali
um belo
burro

tão belo
e tão burro

quanto mais
burro
mais belo

ei-lo ali
para ser
apenas
burro

mais vale ser
do que parecer
é belo ser
como é burro
o não ser

"todo o burro
come palha
é preciso
saber
dar-lhe
de comer"

de tão belo
fico burro
com tudo
isto

Lisboa, 2 de Maio de 2014
Carlos Vieira

                                                        Imagem de autor desconhecido

Café a solo



A sua mão
na chávena de café
de porcelana
a outra mexe
o açúcar mascavado
não existe um pingo
de misericórdia
para o derramado
olhar da sua solidão
bebe todo
o veneno de um trago
e vai-se embora
sem pestanejar
ficou apenas
a pairar
uma ausência
de lâminas
no seu lugar.

Lisboa, 2 de Maio de 2014
Carlos Vieira





                                                        “Automat” de Edward Hooper

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Segredo com Mona Lisa



Vigio-lhe
o dealbar do teu sorriso
tão fulgurante
porém 
não o posso revelar
pois se o fizer
irá de certo desvanecer-se
nos teus lábios
apenas 
meus lábios sabem 
daquilo que aflora 
no teu sorriso
o nosso segredo
e a concupiscência
do teu olhar.

Lisboa, 1 de Abril de 2014


Carlos Vieira


Assobio


há quanto tempo
não ouço um assobio
coisas dos campos
em que saber assobiar
era algo de rapazes
sem desafinar
com aquele timbre
aquele código de pássaro
de brincadeira
ritual de emoção
era algo de se invejar
hoje o assobio
é uma ave de extinção
ou quanto muito
assédio sexual.

Lisboa, 1 de Maio de 2014
Carlos Vieira