Quando chegavam os primeiros chilreios, pinceladas de acordes, os aromas dispersos e inconsistentes das primeiras flores e cores, o irromper de botões acompanhados do rumor dos insectos, a transparência de clorofila das folhas novas, esses sinais sempre renovados e ancestrais da primavera. Ele pedia ao filho mais velho que, por vezes, o visitava depois do trabalho, para lhe colocar a sua cadeira de balouço, debaixo do carvalho, orientada para a oeste.
Esta árvore tinha várias vezes os seus oitenta anos, ali expostos às ventanias que desciam das montanhas e às agruras das estações, a todas as dores provocadas pelos seus netos, que lhe subiam os troncos, ao facto de nenhum raio a ter incomodado, apesar da sua mais que secular longevidade, permitiu-lhe celebrar a imponência da sua presença e da sua perenidade, vários quilómetros em seu redor.
A meio da tarde, por aquela época do ano, até chegar o Inverno, arrastava-se para aquele seu poiso de observação e levava um velho livro consigo, uma edição antiga, em francês, que outro velho amigo um dia lhe ofereceu e a que depois mandou pôr capas de carneira.
Quando corría uma brisa mais fresca tinha um pequeno cobertor que lhe cobria as pernas e ali permanecia até que chegasse o crepúsculo e a noite apagasse tudo o que vivia à sua volta, já que o livro, as letras e as palavras, já muito que tinham adormecido ao seu colo, após aqueles momentos em que sonhava de olhos abertos ou passava pelas brasas.
A paisagem mais longínqua era dos pinhais, onde o sol se punha e deixava a cúpula das árvores como se fossem os dedos de uma multidão que se manifestava. Embora, para si, aquilo que era mais recorrente, era a última imagem de uma batalha medieval, no momento do primeiro embate.
Quase ouvia gritos lancinantes de combatentes trespassados por lanças e flechas e relinchos agonizantes dos cavalos, a inquieta elegância de flâmulas e estandartes, a solidão do reflexo das lâminas das espadas, o mergulho da sofreguidão das ordens e dos gritos de incentivo, engolidos nas trevas da noite e pela persistência das mortes e do socorro aos feridos, tudo isto via ou pressentia ao longe, ali tão perto tinha ocorrido a Batalha de Aljubarrota.
Levava umas migalhas no bolso, os pardais claro perceberam que desde início, esse ritual tinha benefícios recíprocos, às aves poupava-lhe algum esforço na busca cada vez mais difícil de alimentação e para o idoso a ilusão, de estar perante aquela aproximação, um pouco menos solitário e da sua diária utilidade.
O que é um facto é que os pássaros passaram a confiar mais na espécie humana, se isso para eles era bom ou mau, era algo que só apenas muitas gerações se poderia perceber. E foi também um facto é que, enquando dormitara lhe presentearam a manga do casaco com uma dejecto nauseabundo, dizem os antigos, sinal de sorte.
Outras vezes embrenhava-se na leitura, mais própriamente releitura, daquele autor francês que desde a morte da sua mulher, lhe fazia companhia, não tanto pela história mas pela confluência das palavras, das sílabas e dos sons, da justaposição da tristeza e da alegria. A cada texto revisitado, a cada ângulo do se estado de alma, reencontrava-se a si próprio, a alegria da sua solidão e a tristeza das amizades esquecidas.
Chegava a altura da melancolia da queda das folhas e do desprender da bolota, à sua volta e sobre os seus chinelos, quase sentia a terra a revolver-se, nesses dias lia pouco, soletrava os factos mínimos da natureza, a acobracia da aranha pendurada da teia, um coelho bravo mais afoito, o artifício luminoso dos pirilampos e o indescritível contraste dourado do carvalho contra o céu.
Finalmente, um dia o filho mais velho regressou do trabalho e perante o silêncio de resposta do se pai, teve pela primeira vez um sobressalto, o seu pai poderia estar morto, o livro caído no chão e as folhas do carvalho quase o cobriam, dado o vento que se tinha levantado, o seu rosto respirava um grande sossego, não deveria ter morrido há muito tempo.
Lisboa, 12 de Abril de 2014
Carlos Vieira