domingo, 6 de abril de 2014

O último negócio

Certa manhã 
ia eu pelo caminho pedregoso, 
quando, de espada desembainhada, 
chegou o Rei no seu carro. 
Gritei: 
— Vendo-me! 
O Rei tomou-me pela mão e disse: 
— Sou poderoso, posso comprar-te. 
Mas de nada lhe serviu o seu poder 
e voltou sem mim no seu carro. 

As casas estavam fechadas 
ao sol do meio dia, 
e eu vagueava pelo beco tortuoso 
quando um velho 
com um saco de oiro às costas 
me saiu ao encontro. 
Hesitou um momento, e disse: 
— Posso comprar-te. 
Uma a uma contou as suas moedas. 
Mas eu voltei-lhe as costas 
e fui-me embora. 

Anoitecia e a sebe do jardim 
estava toda florida. 
Uma gentil rapariga 
apareceu diante de mim, e disse: 
— Compro-te com o meu sorriso. 
Mas o sorriso empalideceu 
e apagou-se nas suas lágrimas. 
E regressou outra vez à sombra, 
sozinha. 

O sol faiscava na areia 
e as ondas do mar 
quebravam-se caprichosamente. 
Um menino estava sentado na praia 
brincando com as conchas. 
Levantou a cabeça 
e, como se me conhecesse, disse: 
— Posso comprar-te com nada. 
Desde que fiz este negócio a brincar, 
sou livre. 

Rabindranath Tagore, in "O Coração da Primavera" 
Tradução de Manuel Simões



Casa do mundo III

Casa do mundo III

fui ver o mar
ainda azul
de tanto
murmurar

mais uma vez
não se traduz
o que diz
apesar da luz

na verdade
era um monólogo
de espuma

não sei 
se eram os versos 
que morriam na praia
ou eram as ondas?

ficou da poesia
uma mão cheia
de onde escorria
areia
a outra 
de coisa nenhuma

o mesmo
vazio
da melopeia
de um búzio
de vidas
escondidas

fui ao campo
o coração 
era uma couve flor

as emoções 
vegetavam de verde
e creme
em borbotão

o tempo corria 
a passo de caracol
a acompanhá-lo
o coaxar da rã 
no pântano

percorri a cidade
e enfrentei 
o mesmo nada

o bolor 
fumos 
de todos
os escapes
e o lixo nauseabundo
nos becos 

restos de fome
de desamor 
na sombra do jardim

não sei se o tráfego 
passa por mim
se eu por ele

aquele é o ruído 
e a dor
que nos habituámos 
a viver

nas esquinas
dos gavetos
vultos vagos
efémeros protestos

na verdade 
hoje não saí
de mim
nem de casa

hoje abri portas
e janelas
e assim o mar 
o campo
e a cidade
puderam-me visitar

perante 
a raiva e o medo
e a impotência
e a insónia
vieram todos dormir
na minha cama
e fizémos uma orgia
de poesia

Lisboa,  6 de Abril de 2014
Carlos Vieira


"Garrett Room" de Andrew Wyeth

A borboleta...

a borboleta
em ziguezague
e contradição

bate asas
a leveza
dos princípios

distante tsunami 
no insecto
estremece

tudo tão efémero
é um frágil casulo
de ilusão

Lisboa, 5 de Abril de 2014


Carlos Vieira

sábado, 5 de abril de 2014

Rio e choro e canto...

Rio e choro
e canto
só de lembrar-me
do tempo
em que não dormias
e os meus lábios
pousavam
nas tuas pálpebras.

Lisboa, 5 de Abril de 2014


Carlos Vieira

A minha garganta...

a minha garganta
é a gaiola da tua ausência
onde ficam presos a ave e o canto

Lisboa, 5 de Março de 2014
Carlos Vieira

Vórtice



Um remoinho 
no açude
devorou o céu
as nuvens
e as aves
eu e os peixes
sobrevoamos
o espelho de água
e sobrevivemos
na falta de ar
ou no seu excesso
cá nos vamos
aguentando
entre o vórtice
e o caos
eu cá tenho a asma 
a acrescentar.

Lisboa, 5 de Março de 2014


Carlos Vieira

o eterno retorno



um pardal
à volta 
da migalha
uma réstia 
de sol
o frenesim
da tua memória 
à solta
que se espalha
e depois 
por fim
de novo te escolta
ao vazio
até esse lugar
onde em vão 
acreditei
poderia esperar
por ti
breve sombra
de pardal
a esvoaçar
numa réstia de sol

Lisboa, 5 de Março de 2014
Carlos Vieira