sábado, 5 de abril de 2014

É sábado...

é sábado
não seu sei 
se acordo
em sobressalto
com o realejo
se do pesadelo
de lâminas afiadas
de facas e tesouras
à espreita nas ligas
olhares e palavras
sibilinas a coberto
da bruma das manhãs

Lisboa, 5 de Abril de 2014
Carlos Vieira


sexta-feira, 4 de abril de 2014

Incidente de trânsito II

Uma indecisão no tráfego
na manhã do centro da cidade
a mulher acende as luzes
e buzina de forma veemente
ele levanta os braços em protesto
certamente mandando-a
para um outro lado
uma senhora baixa de meia idade
sai do automóvel
ele baixa o vidro diz algo
ela vocifera
ela tenta agredi-lo
o homem agarra-a pelos pulsos
quase a puxando para o seu colo
quase a abraça
naquele momento
todos os transeuntes desconheciam 
se os dois se amavam
se se odiavam
como pode ser semelhante 
o ritual do amor e da violência,
depois, depois o semáforo ficou verde
o homem fechou o vidro e arrancou
iniciou-se um imenso buzinão
a mulher ficou a falar sozinha
regressou ao automóvel
ao seu castelo
à inevitabilidade da sua solidão.

Lisboa, 4 de Março de 2014
Carlos Vieira





Incidente de trânsito I

Páro no semáforo
sorrio
sinceramente
encantado
pela reminiscência
que na desconhecida
havia de ti
ali na faixa da esquerda
um passado
não muito distante
entre mim e ti
dois riscos descontínuos
dois vidros fechados
o lugar do morto
uns pingos de chuva
consegui vislumbrar
pelos cantos dos olhos
que sorrias também
e havia um riso interior
e depois
depois foi a troca 
do número de apólices
o preenchimento 
da declaração amigável
e a discussão serena
de argumentos de quem
era a responsabilidade
pelo sinistro
tinha seguro contra 
todos os riscos 
menos contra a memória 
do seu suave perfume
e as letras
que na sua escrita nervosa
perpassam.

Lisboa, 4 de Abril de 2014


Carlos Vieira

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Perfídias



I
rasteira
gesto que surge
sorrateiro da penumbra
rente ao silêncio do cobarde

II
rasteira
golpe de luz
que te encandeia
na cúmplice obscuridade

III
rasteira
armadilha tecida
da pusilânime circunstância
da pureza contraditória do texto

IV
rasteira
insólita perturbação
que irrompe na ligeireza
conspirativa e eloquente das palavras

V
rasteira
subversão inócua
de um acaso de vontades piedosas
invocando as inóspitas luas da solidão

VI
rasteira
das torres de marfim
em que se consomem
em amor-próprio por detrás das máscaras

VII
rasteira
das girândolas
em que se imolam
os adoradores dos espelhos de água

VIII
rasteira
esse enigma
que se constrói
no emaranhado da mentira
labirinto de autocomiseração

IX
rasteira
do deslumbrado vate
que nas correrias da caça
perdeu a cedilha do ç
na poesia.

Lisboa, 4 de Abril de 2014
Carlos Vieira


Artist


quarta-feira, 2 de abril de 2014

Mãe de trigo



Trago
das manhãs frias
o gosto antigo
do pão de trigo
a sair do forno
ainda morno
de minha mãe
as mãos macias
a espalhar
a manteiga
e um sorriso
do olhar
tão paciente
e meiga
no levedar
dos sonhos
que levo
comigo.

Lisboa, 2 de Abril de 2014
Carlos Vieira


                                                   Engels Kozlov - Baking Bread 1967

segunda-feira, 31 de março de 2014

My old body




My old body:
a ladder of sunlight,
mercury dust floating through--

My forgivenesses,
how you have learned to love me in my sleep.


-- Jean Valentine
Door in the Mountain: New & Collected Poems 

OS VELHOS IMBECIS



Que pensam eles que aconteceu, os velhos imbecis,
Para os tornar nisto? Acaso lhes parece
Que é mais adulto quando a boca descai e te babas,
E te mijas outra vez, e não recordas
Quem veio esta manhã? Ou que, se pudessem escolher,
Fariam recuar as coisas a quando dançavam toda a noite,
Ou se casaram, ou assentaram praça num Setembro qualquer?
Ou imaginarão que realmente nada se alterou,
E que sempre se comportaram como se fossem aleijados ou inábeis,
Ou ficaram sentados dias a fio de fraco sonhar contínuo
Vendo a luz mudar? Se não o fazem (e não podem), é estranho:
Porque não gritam?
Ao morrer, desfazes-te: os bocados de que eras feito
Apressam-se a separar-se para sempre
Sem ninguém ver. É apenas esquecimento, é verdade:
Sabiamo-lo antes, mas então caminhava-se ainda para o fim,
E todo o tempo era afundado num esforço único
Para fazer desabrochar a flor de mil pétalas
De estar aqui. À próxima não podes fingir
Que haverá algo mais. E são estes os primeiros sinais:
Não saber como, não ouvir quem, perdida
A capacidade de escolha. Pelo aspecto sabe-se que estão acabados:
Cabelos cinza, mãos sapudas, cara enrugada de ameixa seca -
Como conseguem ignorá-lo?
Talvez ser velho seja ter quartos iluminados
Dentro da tua cabeça, e gente neles, representando.
Gente que conheces, mas não sabes nomear: cada um aparece
Como uma profunda perda recuperada, vindo de portas conhecidas,
Pousando um candeeiro, sorrindo de uma escada, tirando
Um livro conhecido das estantes; ou por vezes apenas
Só os quartos, cadeiras e um lume acesso.
O arbusto soprado na janela, ou a pálida
Amizade do sol na parede de algum solitário
Fim de tarde de verão depois da chuva. É aí que eles vivem:
Não aqui e agora, mas onde tudo outrora aconteceu.
É por isso que eles mostram
Um ar de ausência confusa, esforçando-se por estar lá
Já estando aqui. Porque os quartos afastam-se, deixando
Um frio inqualificável, o desgaste constante
De retomar a respiração, e eles curvados sob
A montanha da extinção, os velhos imbecis, sem nunca perceberem
Quão próxima está. Deve ser isto que os mantém calados:
O cume que se avista onde quer que vamos
Para eles é um pequeno monte. Não saberão nunca
O que os arrasta para trás, e como irá acabar? Nem de noite?
Nem quando os estranhos vêm? Nunca, durante
Toda esta odiosa infância invertida? Bom,
Havemos de descobrir.