segunda-feira, 24 de março de 2014

Tenho uma rola na chaminé




Tenho uma rola na chaminé
o sol chegou depois da chuva
uma brisa suave corre agora
a tarde vai deitando sombras
eu escrevo toda a banalidade
miséria não é aqui chamada
sobre a natureza um silêncio
se abate é o sono dos justos
que merda como poderia ser
mais eloquente o que escrevi
tivesse o sol chegado fulgurante
antes da chuva e do silêncio
ou da miséria e por inutilidade
me pudesse calar para sempre
e a rola me deixasse trabalhar.

Lisboa, 24 de Março de 2014

Carlos Vieira

falta d’ar



saio à rua
para apanhar ar
o gorjeio dos pássaros
o zumbir dos insectos
dão outro timbre 
aos meus pensamentos,
se fosse apenas 
por isso, esta minha
subversão!

Lisboa, 24 de Março de 2014
Carlos Vieira

domingo, 23 de março de 2014

Este cão rafeiro...

Este cão rafeiro
de vez em quando
aparece por aqui
despeja o poema e ali 
entre palavras em osso
o suor de ritmos perdidos
fareja restos de comida
parte depois para outras
paragem mais promissora.

Lisboa, 23 de Março de 2014
Carlos Vieira


Sinais sem tempo

Sublinho
os traços 
imperceptíveis
as palavras 
engolidas 
em seco
os gritos presos 
na garganta
o sorriso dúctil 
e efémero
a cor desgastada 
da tinta 
nos escombros
após a passagem 
do tempo 
e da intempérie
aquele esgar
de esforço inútil 
gosto 
de um fruto 
esquecido
de um amor
do qual não reza 
a história.

Lisboa, 23 de Março de 2014
Carlos Vieira

Passa a vida...

passa a vida 
atrás das persianas
entreabertas
bastam-lhe 
os corpos
que dali 
vislumbra
solares
satisfaz-se
na penumbra
com a ocasional
coicidência
dos olhares

Lisboa, 23 de Março de 2014

Carlos Vieira

Região demarcada da infância III



nem me lembro
da casta
só do oiro dos bagos
nos seus lábios
depois ficaram
embriagados
cercados 
pelos aromas
e sabores
que exalavam
e os consumiam 
na fecunda
convergência
do desejo
nos seus corpos
firmes e nus

(eu observava-os meio a medo meio escandalizado por detrás de uma parreira)


Lisboa, 23 de Março de 2014
Carlos Vieira

Região demarcada da infância II



Ias pela madrugada, pelos trilhos do vinhedo, olhavas para as videiras, a todas conhecias, desde a raíz como a ponta dos teus dedos, minuciosamente, com a atenção agrícola que te corria, desde pequeno nas veias.
Possuías um olho clínico, ancestral, de perceber o início do oídio, do mildío, ainda que fosse na página anterior da folha, o alastrar da podridão no bago, o começo mínimo de algodão do fungo, a imperceptível mudança de coloração na folha escondida, depois das últimas chuvas.
A seguir tu, grande feiticeiro, recorrias à cal, aos sulfatos e ao enxofre, compunhas as curas e passeavas feito Deus providencial, no meio de uma nuvem, pulverizando as pragas e parasitas que lhe invadiram "as vinhas da ira" e do amor, da sua vida.

Lisboa, 23 de Março de 2014
Carlos Vieira