quinta-feira, 20 de março de 2014

O regresso à casa

Um silêncio 
para mim desconhecido
apodera-se dos objetos da cozinha
tu estás ausente 
e os teus sabores também
descrevo de cor 
uma lista de ingredientes
e pouco sal
as mobílias de madeira 
envernizada
adquiriram um brilho pálido das casas
abandonadas 
ainda ali poderia ainda reeencontrar 
para lá da poalha
o deslizar da volúpia dos teus dedos
por acaso o meu olhar dirige-se
para o lugar 
onde não deverias faltar
e reconheço
a indestrutível dimensão que davas
aos pequenos espaços
as cortinas deixam passar 
agora como dantes
a luz do crepúsculo
que já não te encontra desnuda
perante o meu desejo
vem acompanhada do ruído do tráfego
esse ensurdecedor rumor do sangue venoso
que corre nas ruas da grande cidade
que tu sobrevoavas
com teu olhar de adormecer a dor
e de arrasar a solidão
e fazer tremer as esquinas 
e de fazer sorrir as superfícies espelhadas
tento-te surpreender 
nos teus inconfundíveis
gestos domésticos em que te reconstituo
mas reencontro apenas o ocre do vazio
o percurso de retorno do teu eco 
no aroma familiar já distante 
dos teus beijos cálidos
a pairar apenas na única memória
que ainda torna mais afogueada a respiração
há cabides a mais no guarda-roupa
e lembro-me da bruma volúvel dos tecidos
segunda pele do teu corpo
onde rasgava noites e madrugadas
percorro as divisões 
onde encontro pedaços de ti
um gancho do cabelo do princípio dos tempos
dos nossos tempos
o rubor da cumplicidade das acácias a acenarem 
na janela poente da sala
as tuas mãos em estrela 
no cobre das torneiras em flor do lavatório
em que te observava
ávido das tuas mãos em concha
o recanto onde me cercaste
e me encostaste à parede
e fizemos amor pela última vez
derrubando todos os muros
a casa em silêncio
permanece para que não se quebre
a serenidade do teu rosto
no dia em que partiste
e as palavras que dos teus lábios
saíram mansamente 
falando de uma viagem 
que eu nunca suspeitei
não ter regresso
porque não tinha fim.

Lisboa, 20 de Março de 2014
Carlos Vieira


A relatividade do tempo



Espera sentado
o médico está em atraso
para o "caranguejo"
nem atrasa nem adianta
todos morreremos
um dia e somos uns
para os outros
na compreensão
da morte
mais tarde ou mais 
cedo vamos morrer
não há grande 
coisa a fazer
as doenças
incuráveis
podem esperar!

Lisboa, 19 de Março de 2014


Carlos Vieira

quarta-feira, 19 de março de 2014

Mais um assalto



Alto
isto é um assalto
depois abri a gaveta
dei-lhe todo o apuro do dia
chamaram-me nomes que não 
posso aqui reproduzir porque se
encontram aqui senhoras e eu olhava 
ora para os olhos da espingarda de canos
serrados ora para os olhos de sanguinário
do bandido interlocutor que se viam como bichos 
nervosos por debaixo do passa-montanhas a seguir 
pediu-me o segredo do cofre e eu disse-lhe em segredo 
que não sabia foi então que me deram uma coronhada 
na cabeça como se vê nos filmes ninguém me mandou
armar-me em herói e desde aí não me lembro de mais nada
nem sinais particulares só uma poça de sangue e o couro cabeludo
empastado um assalto é um assalto e eu fui apenas mais uma vítima
destes mundo cada vez mais violento e para o que me deu reagir calmamente
em forma de verso branco a três esqueléticos e desgraçados toxicodependentes
que conseguiram o magro pecúlio de setenta e cinco euros e na sua infinita misericórdia
me pouparam a vida de marçano.

Lisboa, 19 de Março de 2014
Carlos Vieira

Reinvenção do amor



Foi de soslaio
que te revi
e ao voltar-me
para ti
ao regressar
ao teu nome
já não estavas
agora
o meu amor
é apenas
e de novo
a sombra
o lugar
onde te perdi
amar
é pedaço
a pedaço
voltar
a ter-te
inteira
a ti e à tua
sombra
e confundir
o teu nome
com a noite
e o teu corpo
com a madrugada.

Lisboa, 19 de Março de 2014
Carlos Vieira


segunda-feira, 17 de março de 2014

poemalagunar



O pequeno lago
surgiu na circunstância
das grandes chuvas
pequeno olhar
que testemunha
os movimentos
imperceptíveis das estrelas 
cintilantes e insones
perante as bátegas
irradiando ondas circulares
o interrupto estrépito
das pequenas rãs
que crepusculares
temem o inexorável fim
do pequeno lago.

Lisboa,17 de Março de 2014

Carlos Vieira

Pede um ...

Pede um whisky de malte
bebe vários de um trago
até estar seguro
que te pode abandonar
à tua sorte.

Lisboa,17 de Março de 2014

Carlos Vieira

Fragmentos de Vénus



rende-se
ao ardil
dos teus lábios

a labareda
das tuas mãos
lambe devora o seu tronco

cresce o desejo
e no teu rosto o mistério
se desvanece

estás nua
de pé e de costas
ninguém te fica indiferente

apanha o teu cabelo
revela o perigo
que é a curva do teu pescoço

ficas em silêncio
quieta
inacessível

não a pode ver
o cabelo na face e os seus olhos
são animais na penumbra

agachada os seios tocam
as suas pernas
nunca espera por ninguém

tu és uma estátua
firme e inteira na esquina da praça
toda a  gente te aponta e te vê passar

mulher a dias e de todos os dias
com tuas espáduas
afastas as hienas que te esperam nas noites

Lisboa,17 de Março de 2014

Carlos Vieira