Vou pendurado no autocarro
à minha volta
uma conferência de odores
exalando das axilas
uma exaltação de tecidos
que contornam
a solidão das carnes
mais ou menos
substanciais.
Não consigo deixar
de mencionar as bocas
e os dentes
mais ou menos alinhados
ou lavados
ali mesmo à minha frente,
ai se eu fosse do boxe
convidava alguns,
ai se fosse especialista
na sedução do amor
urgente.
Ali ía eu pendurado
no autocarro
meio a fazer de Cristo
outro meio
a fazer de gente.
Duas raparigas
acoitaram-se
debaixo das minhas asas,
acharam-me inofensivo
nesta minha meia idade
um pouco altivo
quase indiferente
e sem se importarem,
lá continuaram sua conversa
de pequenas traições
ou atrações conforme o ponto de vista
e chegamos ao Monumental.
Entrou um grupo
de estudantes de liceu
de mochila
com suas eternas
efémeras glórias
e entrou uma senhora grávida
e foi um sururu,
por causa dos lugares prioritários
e das mochilas,
de quem ficava sentado
quem se devia levantar primeiro,
malcriado pra aqui
mal educado para acolá
e até que em fim
e mãe e nascituros sentados.
Continua o baile
digo a viagem
sem mais incidentes
mais travagem
menos travagem,
seu filho de uma senhora
de má fama
e do teu pai
que não tem culpa.
Entra um grupo de carteiristas
escolhem a vitíma
preparam os "garfos"
fazem a fita
aliviam uma senhora da carteira
tudo muito limpo
com muita elegância
por pouco dinheiro
o pior são os documentos.
Siga, siga viagem
uns sentados e outros em pé
estamos quase em fim-de-linha
uma senhor faz crochet
outra disse-me que lia
pela sétima vez Anna Karenina
Havia um senhor reformado
do metro
que agora só andava de autocarro
foram quase 40 anos a andar
debaixo da terra
e tinha toda a razão.
De vez em quando
encontrava aquela miúda
a quem as pessoas
por vezes davam as mãos
e outras os pés
era manicure
de Belo Horizonte
ou talvez nem tanto.
E encontrava a empregada
do Sr. Fonseca
- o semáforo nunca mais abre -
boa pessoa
muito católico
e arrumado
por vezes ríspido
quando estava a senhora,
muito afável
e agradável
em outros momentos
e a conversa entrou
num registo...
- felizmente o semáforo ficou verde!
Lisboa, 14 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira