sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Viagem do autocarro 738



Vou pendurado no autocarro
à minha volta 
uma conferência de odores
exalando das axilas
uma exaltação de tecidos
que contornam
a solidão das carnes 
mais ou menos
substanciais.

Não consigo deixar
de mencionar as bocas
e os dentes 
mais ou menos alinhados
ou lavados
ali mesmo à minha frente,
ai se eu fosse do boxe
convidava alguns,
ai se fosse especialista
na sedução do amor
urgente.

Ali ía eu pendurado 
no autocarro
meio a fazer de Cristo
outro meio
a fazer de gente.

Duas raparigas 
acoitaram-se 
debaixo das minhas asas,
acharam-me inofensivo
nesta minha meia idade
um pouco altivo
quase indiferente
e sem se importarem,
lá continuaram sua conversa
de pequenas traições
ou atrações conforme o ponto de vista
e chegamos ao Monumental.

Entrou um grupo 
de estudantes de liceu
de mochila
com suas eternas
efémeras glórias
e entrou uma senhora grávida
e foi um sururu,
por causa dos lugares prioritários
e das mochilas,
de quem ficava sentado
quem se devia levantar primeiro,
malcriado pra aqui 
mal educado para acolá 
e até que em fim
e mãe e nascituros sentados.

Continua o baile
digo a viagem
sem mais incidentes
mais travagem 
menos travagem,
seu filho de uma senhora
de má fama
e do teu pai
que não tem culpa.

Entra um grupo de carteiristas
escolhem a vitíma
preparam os "garfos"
fazem a fita
aliviam uma senhora da carteira
tudo muito limpo
com muita elegância
por pouco dinheiro
o pior são os documentos.

Siga, siga viagem
uns sentados e outros em pé
estamos quase em fim-de-linha
uma senhor faz crochet
outra disse-me que lia 
pela sétima vez Anna Karenina

Havia um senhor reformado 
do metro
que agora só andava de autocarro
foram quase 40 anos a andar 
debaixo da terra
e tinha toda a razão.

De vez em quando
encontrava aquela miúda 
a quem as pessoas 
por vezes davam as mãos
e outras os pés
era manicure
de Belo Horizonte 
ou talvez nem tanto.

E encontrava a empregada
do Sr. Fonseca
- o semáforo nunca mais abre -
boa pessoa
muito católico
e arrumado
por vezes ríspido
quando estava a senhora, 
muito afável
e agradável
em outros momentos
e a conversa entrou 
num registo...
-  felizmente o semáforo ficou verde!

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira



Periclitante



I
periclitante
o fruto
pendente
em busca
dos teus 
lábios

II
periclitante
a pedra solta
no muro
ave
na tua mão

III
periclitante
a espiga
madura
do trigo
a tristeza
do pão
sem sal

IV
periclitante
e prestes
a lágrima
furtiva

IV
periclitante
a queda
do pássaro
no primeiro
voo

V
periclitante
a nota
em falso
que se evade
do piano

VI
periclitante
a palavra
no céu da boca
e ainda
ausente

VII
periclitante
o último
botão
do vestido
depois
a solidão

VIII
periclitante
o dedo
a tremer
de medo
no gatilho

IX
periclitante
o gesto
aflito
e o passo
errante

X
periclitante
a estrela
cintilante
testemunha
inquieta
no beijo
urgente

Lisboa, 14 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Letal



Letal
é a palavra
lâmina
de punhal
que sonha
afagar
a flor
adormecida
em qualquer
peito,
é deixar
de amar,
é o abandono
que nos mata
corrosão
que avança
para devastar
no final
a pureza
do olhar
de quem
se ama,
é a serpente
e é veneno
que já vão
a caminho
do incauto
coração,
letal
é a flecha
que cega
a noite
lentamente,
é barco
dentro de ti
a navegar
a respiração
agonizante,
é a morte
inevitável
das palavras
a reinventar
eternamente
outra letalidade
outra vida
menos vulnerável.

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


                                                   Automat (1927) de Edward Hopper


E o Corvo aqui tão perto



Ontem, no meio bruma atlântica, hipóteses de vagas de vinte metros, ventos em que a velocidade que o anemómetro conseguiu medir chegou aos 157 kms/h.
Ontem foi insuportavelmente longo o dia, sobre os 17,13 km2º de superfície. Todos os deuses se puseram de acordo, em não deixar sair ninguém às canadas.
Os homens do isolado Corvo espreitaram para a nesga de mundo que lhe resta, pelos postigos e portas entreabertas.
Nas pequenas quadrículas dos caixilhos sobrevivia o Morro dos Homens, nestas tão fantásticas e verdadeiras terras do fim do mundo.

Lisboa,13 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira



País aguado



País de água
que assoma nos interstícios 
de adobe
de casas antigas
preenchendo as brechas abertas
em memórias agitadas
ao largo
da presunção da inocência
na margem dos suor frio
um amor que se encontra abalado
sem rumo
perante o trágico desmoronar
dos caminhos
o nível das águas vai subindo
ninguém dorme sossegado
alguém sufoca
na respiração movediça das algas
existe um olhar toldado
na sombra dos castanheiros
as rãs ensaiam os seus saltos ridículos
barcos navegam desgovernados
prevalece o livre arbítrio
na escuridão do canal
está encurralada pelo rumor das piranhas
a clarividência de um pensador
neste país de água
o fulgor da primeira madrugada
inicia-se  agora no peito da minha amada
que deixei a salvo deste caos
sereia resguardada
por uma couraça de escamas
de onde ainda escorre uma réstia
de luar embaciado
e por cima da falésia
contra a sofreguidão do vento
o vulto em contraluz
do pescador de águas turvas
país paciente
ou cansado 
de morrer na praia

Lisboa, 13 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira




quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Reguengos do Alviela



Todos os anos
regresso a ti
ilha mais que provável
isolamento acidental 
ao sabor
das comportas e das marés
barcos 
entram para a janela
e são amarrados às chaminés
meu amor 
não sabe nadar
vem até mim
de galochas
com seus braços de água.

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Levantas a voz...

levantas a voz
como uma estrela
que derrama a luz
sobre o mundo
como algo
que agora acorda
toda a terra
não levantes a voz
acorda-me apenas
só nós 
encerra
esse história
mal contada
de sermos do mundo

Lisboa, 12 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira