sábado, 8 de fevereiro de 2014

Logro...

Logro
sem saber como atingir o objectivo
sem saber porquê 
começo a amar-te sem dar por isso

Lisboa, 8 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A arte de bem cavalgar toda a sela



Entre a margem do rio 
e a orla da floresta
chove sobre os garranos 
a trote

de vez em quando 
o meu coração dá coices
com o lápis de carvão 
com que escrevo
tomou o freio nos dentes

entre mim
e o vapor do aroma que exala 
da chávena de café
vislumbro pássaros e peixes
em alegre concupiscência 
à rédea solta

outros mais vulneráveis
e dóceis
fazem o volteio
no picadeiro.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2014


Carlos Vieira

O meu sonho...

o meu sonho 
é agora a casca oca de um crustáceo
sobre o musgo o coral e a espuma
suas pinças erguem ainda ao sol
uma prece de sal

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2014


Carlos Vieira

Son(h)o interrompido



Eram 3h47 da manhã, rezava o vermelho digital do despertador. Não sei se o sono foi interrompido pela insónia, se pelo assobio criado pela ventania no ricochete das empenas, se pela caixa de música e de fantasmas penduradas no estendal da marquise.
Não sou médico, nem psiquiatra mas parece-me relevante saber, por que razão não dormimos ou porque nos mantemos acordados, se temos esqueletos no armário, se é apenas o vento nos contrafortes das esquinas ou se deixaram de nos embalar os fantasmas que criámos.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

Carta de despedida aos amigos



“Se por um instante Deus se esquecesse que sou uma marioneta de trapo e me oferecesse mais um pouco de vida, não diria tudo o que penso, mas pensaria tudo o que digo.
Daria valor às coisas não pelo que valem, mas pelo que significam.
Dormiria pouco, sonharia mais.
Entendo que por cada minuto que fechamos os olhos, perdemos 60 segundos de luz.
Andaria quando os outros páram, acordaria quando os outros dormem.
Ouviria quando os outros falam e como desfrutaria de um bom gelado de chocolate…
Se Deus me oferecesse um pouco de vida, vestir-me-ia de forma simples, deixando a descoberto não apenas o meu corpo, mas também a minha alma.
Meu Deus, se eu tivesse um coração, escreveria meu ódio sobre gelo e esperava que nascesse o sol.
Pintaria com um sonho de Van Gogh as estrelas de um poema de Benedetti, e uma canção de Serrat seria a serenata que oferecia à Lua.
Regaria as rosas com minhas lágrimas para sentir a dor dos seus espinhos e o beijo encarnado das suas pétalas…
Meu Deus, se eu tivesse um pouco mais de vida, não deixaria passar um só dia sem dizer às pessoas de quem gosto que gosto delas.
Convenceria cada mulher ou homem que é o meu favorito e viveria apaixonado pelo Amor.
Aos Homens, provar-lhes-ia como estão equivocados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam de se apaixonar.
A uma criança dar-lhe-ia asas, mas teria de aprender a voar sozinha.
Aos velhos, ensinar-lhes-ia que a morte não chega com a velhice, mas sim com o esquecimento.
Tantas coisas aprendi com vocês Homens…
Aprendi que todo o mundo quer viver em cima de uma montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a encosta.
Aprendi que quando um recém-nascido aperta com sua pequena mão, pela 1ª vez, o dedo de seu pai, o tem agarrado para sempre.
Aprendi que um Homem só tem direito a olhar outro de cima para baixo quando vai ajudá-lo a levantar-se.
São tantas as coisas que pude aprender com vocês, mas não me hão-de servir realmente de muito, porque quando me guardarem dentro dessa maleta, infelizmente estarei a morrer…”
Gabriel Garcia Marquez

Uma mulher apaixonou-se...

"Uma mulher apaixonou-se por um homem que estava morto havia anos. Não lhe bastava escovar-lhe os casacos, limpar-lhe o tinteiro, tocar o seu pente de marfim: teve de construir a sua casa sobre a sepultura dele e sentar-se com ele, noite após noite, na cave húmida."


Lydia Davis, Contos Completos

Subo a escada devagar...

Subo a escada devagar para sentir nos cascos a quentura da pedra.
Uma borboleta pousou no corrimão bem ao meu alcance.
Prendi-a pelas asas, mas tremeu tanto que soltei-a.
Saiu voando buleversada como se tivesse ficado cem anos presa.
Nos meus dedos, o pó prateado. Tão breve tudo.
Prendi assim a alegria, ainda há pouco foi minha,
mas se debateu tanto que abri os dedos antes que a ferisse,
não se pode forçar.
Um pouco mais que se aperte e não fica só o pó, mas a alma. 


Lygia Fagundes Telles