quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

o tempo...

o tempo
é tão breve
para aquela folha
que se desprende
que dança no ar
e no meu olhar
deixo-a depois
pousada no chão
até quando
só a brisa sabe

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014

Carlos Vieira

Pressentimento



Possui
esse enorme atributo
ou defeito
dos predadores
de tentar distinguir
na natureza
os movimentos subtis
os matizes
da paisagens os rumores
o tremor do frio
o murmúrio cúmplice
dos sinais
os passos longínquos
que persegue
a destilação dos odores
na fruta que cai
o crepitar
das folhas num abrigo
o eclodir do cio
consegue identificar.

Porém
se reconhece
que estás em perigo
aí tudo se esvai
no caudal
a transbordar desse rio
do amor
que freme
ao chegar ao porto  
de qualquer peito
e que fazendo
mais humano o animal
não o consegue
esconder  de si próprio
a sangrar
excessivamente
exposto
à violência da paixão
e do desejo
cercado pela alcateia
do costume
e da razão
fazendo que em breve
se renda
e esteja morto.

Lisboa, 5 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira




                                      
                                          Imagem de autor desconhecido de Tigre da Índia

Barcarole (Offenbach) - The Philadelphia Orchestra (+lista de reprodução)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Tempo morto



Traz da sua infância 
o cheiro podre das maçãs
e a precariedade
dos pêssegos
de onde recupera 
o tema da eternidade
do fruto proibido
ele nunca soube amar
por isso sobreviverá
pois para ele
o tempo nunca existiu
e só ele quando
chegar o momento
poderá olhar de frente 
a morte.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Excertos de Malcolm Lowry


(...)
- O albatroz, à meia-noite, aninhou-se no mastro, o grande bico, visto da ponte, doirado na luz movente: quando o bico estava lá fazia uma terceira luz. Finalmente afastou o bico e só se podia ver, de bombordo, as penas da cauda. Era o albatroz mãe. Ficou ali a noite inteira, enquanto no outro mastro, à ré, estavam cinco jovens albatrozes, aninhados juntos, negros... A mãe albatroz trouxera a sua ninhada para bordo para descansar.
Nov. 26. De manhã os tripulantes apanharam um deles para Primrose. O albatroz bebé na amurada com seus pés vermelhos e bico de esmalte azul e penas cor de corça, sibilando. Depois, para minha alegria, soltaram-no. ..
Frére Jacques, Frère Jacques. Dormez-vous? Dormez-vous?
A Costa do Panamá é como o País de Gales. O velho Charon não quis vir ver o albatroz. Depois da captura do albatroz, mais coisas excitantes (...)

Naufrágios


Ontem quis ser náufrago
e adormecer assim na minha cabana de palmeiras,
fazer com dois cocos um sutiã para a minha mulher.

Quis ser náufrago
e andei pelas bibliotecas e pelas ruas,
questionei inclusivamente a experiência.

E no fim aprendi
que, para o ser,
só tinha de recordar
o que parecia não ter importância,
e varrer um pouco a praia
antes de me instalar,
não se desse o caso do último inquilino
se ter esquecido de o fazer.

Manuel Arana


(Versão minha; original reproduzido em Poesía por venir - Antologia de jóvenes poetas andaluces, Junta de Andalucía / Editorial Renacimiento, 2004, p. 14).

Os Solitários


No solitário, a reclusão, ainda que absoluta e até ao fim da vida, tem muitas vezes por princípio um amor desregrado da multidão e tanto mais forte do que qualquer outro sentimento, que ele, não podendo obter, quando sai, a admiração da porteira, dos transeuntes, do cocheiro ali estacionado, prefere jamais ser visto e renunciar por isso a toda e qualquer actividade que o obrigue a sair para a rua. 

Marcel Proust, in 'À Sombra das Raparigas em Flor'