terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Em tempo de miséria




desço por um jardim transparente
entre lodo e hortelã

andam assistentes sociais pelo bosque
à procura de pobres
agitam contas e berlindes

acaba aqui a rédea solta, há que escolher as armas

troco à sombra do derradeiro cipreste
dois versos e um dedo
por uma noite de sono e um detonador

joão almeida
resumo
a poesia em 2009

assírio & alvim
2010





Em terra de cegos...

"Em terra de cegos, só quem tem um olho é rei. Quem vê com os olhos todos, o corpo todo, a alma toda só pode estar condenado ao exílio e à maldição"

João Bénard da Costa

Acordai


acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raíz

Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações

Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O café...

O café é um cerimonial
o lote, a máquina limpa 
a água pouco calcária
a chávena escaldada
o humor do Sr. Fernando
o açúcar mascavado
a humidade do teu olhar 
depois do sexo incendiar
os raios do amanhecer.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014


Carlos Vieira

Apardalados

Apardalados

Um casal de namorados
atónitos
entrelaça as mãos
aves decapitadas.

Pousavam sobre 
as mesas 
as chávenas de café
arrefeciam, 
intercaladas
por beijos intemporais.

Olham-se
como se fosse
a primeira vez 
que se viam 
reinventam a narrativa
das caricías breves
e dos pequenos gestos. 

Em tempo crise
mais ousam os pardais 
ao aproximarem-se
e ao debicarem pelo chão
à volta deles
as migalhas de amor
e de pão

Por pouco
cagam-lhe em cima
o que bam vistas as coisas
não é poético
nem é bonito.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira


Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Esplanadas

Sempre tive 
uma certa atração 
por esplanadas
e por noites de verão
não necessáriamente 
pela mesma ordem
sobretudo observar 
as comédias sexuais
que elencos amadores
ali representam
espontaneamente.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2014
Carlos Vieira

Está quase tudo bem!


Todos os dias, o via chegar com o seus, 70 anos, a ele e ao seu casaco coçado quadriculado, tinha uma sua camisola de borbotos que parecia confortável com umas renas a passearem-lhe ao nível do peito, o colarinho estava coçado e tinha pronunciadas rugas de expressão na face.
Em cima das quatro horas, os seus olhos azuis enfrentavam o relógio de feira, descaído, na parede do estabelecimento, aparecia aquele rosto magro e anguloso, uma expressão gentil.
Se tiver vaga, ir-se-á sentar na mesma cadeira, estrategicamente, colocada com vista para a entrada e o empregado perguntava-lhe: “- Está tudo bem e é o mesmo de sempre!” e ele via responder sorrindo, serenamente: “- Está quase tudo bem, é isso mesmo!”. Demorará cerca de 25 minutos a comer meia torrada e a beber um galão escuro.

Lisboa, 3 de Fevereiro de 2013
Carlos Vieira