domingo, 26 de janeiro de 2014

A Esperança de uma Relação Profunda


Conhecemos as pessoas durante anos, até mesmo dezenas de anos, habituamo-nos a evitar os problemas pessoais e os assuntos verdadeiramente importantes, mas guardamos a esperança de que, mais tarde, em circunstâncias mais favoráveis, se possam justamente abordar esses assuntos e esses problemas. A esperança, sempre adiada, de um relacionamento mais humano e mais completo nunca desaparece completamente, porque nenhuma relação humana se contenta com limites definitivos, restritos e rígidos. Permanece, portanto, a esperança, de que haja um dia uma relação «autêntica e profunda». E permanece durante anos, até mesmo décadas, até que um acontecimento definitivo e brutal (em geral, uma coisa como a morte) vem dizer-nos que é demasiado tarde, que essa «relação autêntica e profunda», cuja imagem tínhamos amado, também não existirá; não existirá, tal como as outras. 

Michel Houellebecq, in 'As Partículas Elementares'



Vamos morrer...

"Vamos morrer. Eles sabiam disso, e suas últimas palavras a suas famílias foram: ‘Eu amo vocês.’ Mesmo no sofrimento, suas últimas palavras foram de amor… Pessoas que poderiam ter se salvado e em vez disso correram de volta para salvar outros. Se a humanidade é capaz disso, como posso perder a esperança na humanidade?"

Ellie Wisel

Nos teus lábios...

Nos teus lábios a noite
descreve um arco.
É o ciclo da melancolia
que se fecha.
Talvez não regresse.
Por outros sinais
lamentaremos a beleza
que, nos teus lábios,
a noite fez cessar.

Poesia




Se outras preferiam os tecidos de seda
do desejo
ela dava-se à ganga coçada
do amor
depois de noites mal dormidas.

Derivava pelas ruas perdidas
de uma cidade de luzes aquosas
opostas ao comércio
livre jogando a não ser vista
senão nos inquietantes interlúdios
das árvores.

Pautávamos os nosso sonhos
pelos seus inaudíveis passos,
toques insistentes à porta
a desoras e sem avisar.

Nunca fomos tão felizes
como quando arrancados
literalmente da cama
a seguíamos pelas alamedas
até a um mar sem dano.

Porque de praias e luz
era feito o nosso corpo,
essa espécie de fome.
em Postos de Escuta, Lisboa: Presença, Colecção Forma, 1ª edição, 2003, pp. 31-32.

do nada à minha margem

     É um negro voo...

Mistura de águas profanas
com esta morte que triunfa
de um sonho proibido...

É a magia de esquecer
as cintilações
de uma angústia erguida.

É o sono.
O sono eterno
que me cobre.

É o furor de amar
esta loucura inocente
que passeia o meu corpo.

É o regressar a casa
fiel ao desejo
de esquecer a ilusão
de quem escolhe
os desesperos de um só instante.

É o poeta que rebenta na tua voz.

É o poeta
ensanguentado pelos poemas
que bebi
com cuidado.

É o poeta
que traz a chuva
que apenas existe na lúcida memória
das coisas não existentes.
O poeta
que me resume
e não me lê...
que me teme
e não me vê…

É o poeta de mim...

O naufrágio
que reembarca
do nada à minha margem.





conceição t. sousa
poemas do tamanho de nós
cordão de leitura

a ruela

a ruela
de geometria variável
exembriagada
é um arremedo de artéria
sem misericórdia
sem estudos
esconsa e de luz dura
ali abundam
os biombos que escondem
a miséria
uma ternura de punhal
ao ritmo 
de música pimba


a ruela
dos olhares libidinosos
e das mulheres da rua
de seios de silicone
generosos
assobiando
da ombreira da porta
em pinturas
de guerra seminuas
com nuances
em adolescentes
anoréxicas 
tão cedo já velhas
de faca na liga
e facilidade em preservativos

a ruela
é de pequenos "dealers"
consumidores
traficando o panfleto
com produto de corte
no saguão
onde uma luz difusa
decompõe a agulha
a veia e o garrote
a tolerância
aos riscos e aos ácidos
e vamos experimentar
e foge que vem aí
a bófia
já não se pode estar
descansado
na Terra

a ruela
esse laboratório social
de frascos
de perfume barato
e desemprego
de longa duração
e sabores exóticos
de grafittis
e retortas e pipetas
de alcóolicos anónimos
e bisturis
improvisados
de velhotes
que se atiram das escadas
por não chegarem à janelas
nos bazares chineses
há bugigangas
e como são oportunas
estas estruturas e objectos
a funcionar
como redes informais
de suporte

ouve-se o tamarelar
de línguas cada vez menos
estranhas
na ruela
cada vez mais 
cosmopolita
nome técnico para o caos
para a falta de raízes
e traficância de deuses
cada vez somos mais
poliglotas
uns falam em alhos
e outros em bugalhos
cada vez mais fluentes
e mais descartáveis

as ruelas
no fim de contas
apenas tem a ver com m2º
com decíbeis
com a potência do contador
e nada mais
gosto desta precisão/explicação
científica
tecnológica
desta gente 
perfeitamente integrada
no seu meio cultural
e que para o mundo
é apenas um número marginal

Lisboa, 25 de Janeiro de 2914
Carlos  Vieira

sábado, 25 de janeiro de 2014

Gosto do tiro ao arco...

Gosto de tiro ao arco, de sentir a madeira do punho, da tensão imperturbavel que antecede o soltar da corda, de observar a elegância do voo da seta, sabendo que na leveza das suas penas, leva o suor dos meus dedos.
Na instável maçã vermelha, vislumbro o pânico no olhar do filho de Guilherme Tell, guardo comigo, uma última seta na aljava, para defender o teu amor, uma ideia antiga de país, onde se pode ouvir o silvo das palavras em liberdade.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira