quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

tantas lembranças de que não me lembro


Uma coisa que me põe triste
é que não exista o que não existe.
(Se é que não existe, e isto é que existe!)
Há tantas coisas bonitas que não há:
coisas que não há, gente que não há,
bichos que já houve e já não há,
livros por ler, coisas por ver,
feitos desfeitos, outros feitos por fazer,
pessoas tão boas ainda por nascer
e outras que morreram há tanto tempo!
Tantas lembranças de que não me lembro,
sítios que não sei, invenções que não invento,
gente de vidro e de vento, países por achar,
paisagens, plantas, jardins de ar,
tudo o que eu nem posso imaginar
porque se o imaginasse já existia
embora num sítio onde só eu ia...


Manuel António Pina, Todas as Palavras

Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo



Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo
nem fazer explodir a madrugada nos teus olhos.

Eu quero apenas amar-te lentamente
como se todo o tempo fosse nosso
como se todo o tempo fosse pouco
como se nem sequer houvesse tempo.

Soltar os teus seios.
Despir as tuas ancas.
Apunhalar de amor o teu ventre.

Joaquim Pessoa

Agricultura sustentável



De vez
em quando
volto à timidez
das hortas
às raízes
caladas
das horas
e aí retomo
os altos voos
e desfio
a teia de orvalho
de uma vida
rasteira
a um palmo
acima
da terra.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

                                                          Foto de autor desconhecido


terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Resistindo

Resistindo


Enfio-me no vale dos lençóis
de corpo inteiro,
enrolo-me como uma múmia
e ali fico a fingir de morto,
resistindo.

Quando vou no ar já durmo
e apanho as correntes de ar,
estou sem sombra de dúvida
cansado, de mim ou do mundo,
resistindo.

Durmo de costa a costa
e ao chegar de madrugada,
já me esqueci de quase tudo
e começo a vida de quase nada,
resistindo.

Dizem que isto é o sono dos justos
por ser tão profundo e sereno,
estou porém convencido, de que isto é
uma espécie de morte, a que vamos 
resistindo.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Gala e Dali

Quando eram já muito velhos, o célebre pintor Salvador Dali e a sua mulher, Gala, tinham domesticado um coelho, que depois passou a viver com eles, sem os abandonar um instante; gostavam muito dele. Um dia em que tinham de partir para uma longa viagem, estiveram a discutir até muito tarde, durante a noite, o que haviam de fazer com o coelho. Era difícil levá-lo, mas não era menos difícil confiá-lo a alguém, porque o coelho desconfiava dos homens. No dia seguinte, Gala fez o almoço e Dali deliciou-se com ele, até ao momento em que percebeu que estava a comer um guisado de coelho. Levantou-se da mesa e correu para a casa de banho para vomitar no lavatório o seu animalzinho querido, o fiel companheiro dos seus dias de velhice. Gala, em contrapartida, sentia-se feliz por o seu amado lhe ter penetrado nas entranhas, as ter acariciado lentamente, transformando-se no corpo da sua amante. Não conhecia consumação mais absoluta do amor do que a ingestão do bem-amado. Comparado com esta fusão dos corpos, o acto físico do amor parecia-lhe um prurido irrisório.


Milan Kundera, A Imortalidade

O Fósforo na Palha


Aos meus olhos
a cidade organiza
a sua tristeza.

Uma cintura aperta
a asfixia.
Um furo mais.

Um riso eleva-se
e sou eu que rio
sou eu que amo.

Auxilio a cidade
a suportar.
Um furo menos.

Não há pedras bastantes
para o nosso túmulo.


Egito Gonçalves

Encontro nos vincos...

Encontro nos vincos mais longínquos dos meus
dedos o cheiro parado do teu olhar tão móvel. Procuro-te
nas esquinas dos instantes que passam. Reconheço-te
no vinco que a ternura deixa na carne do peito do
meu olhar, aquele que deito para longe, para outra esquina,
de onde recebo mensagens de outro olhar igualmente
teu, igualmente meu, reflectido na montra de
uma loja do nosso sono.


Manuel Cintra