sábado, 18 de janeiro de 2014

AS COISAS FRÁGEIS


Pegava-te no nome como no aquário
verde, quando era ainda cidade de peixes –
bichos de alimento diário e morte mensal,
silenciosa, sem desgosto ou pânico,
indiferente à vida. (As nossas, as deles.)
Hoje caminho, como todas as manhãs, com a tua existência
nas mãos (na cabeça, nos pés), seguro-a como coisa frágil,
quebradiça – coisa morta do dia em que morreste.
Recordo apenas o pássaro. Tinha no nome ruivo
e no bico o som atenuado de uma canção.

[in As Coisas, Abysmo, 2012]

Minha filha...


Minha filha
pouso os lábios
na tua testa
ardes de febre
o meu coração
é agora pássaro
preso na gaiola
do desassossego.

Lisboa, 18 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira



                                                                Pintura de Klimt

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

E de Espinhas para um gato V



LA CATHÉDRALE ENGLOUTIE


Deste lado da vida
são sete horas (vestidas
de preto, vermelho e medo)
da manhã de outro dia.
Mas a janela fechada dá
para a noite ancorada
de leve sobre as esperanças
azedas da cidade.

Conto um rio preso num poço,
dois comboios afogados na pressa,
meia dúzia de faróis
acesos em prédios
cuja felicidade parece sempre
proporcional à distância.

O vinil negro continua a rodar,
atiça os seus pássaros enferrujados
contra a lua atada 
a uma das chaminés.
E a luz que nunca chega
traz as últimas notícias da guerrilha,
expõe o plástico roto nas armas
dos nossos heróis de ontem.

Abandono as saudades 
pelos telhados, com
as patas embaciadas, os olhos
magros. Saio.
Recomeço a fazer horas
para novos sonhos. 


Inês Dias, Um raio ardente e paredes frias,
Lisboa, Averno, 2013

Angelita



Tatuar o corpo de ANGELITA
Nas escrituras da vida
É o que melhor faz o poeta JOSÉ TERRA.
Apresentar seu rosto ao sol e à chuva
É amar incondicionalmente a criança e o idoso.
Maravilhar as suas mãos
É unir todo homem e toda mulher.
Pousá-la no peito
É fazer a música maior dos anjos.
Creio que dormir entre seus seios
Tem a magnitude do vinho de DEUS.
Não há diferença entre estar nas suas coxas
E comer o pão e o peixe do dia.
Sou transcendental : admiro e gosto de suas nádegas.
Inscrever o amor-paixão nas suas costas
É saber a essência das coisas eternas.

Jose Terra


Quietude



Pressinto as asas
do silêncio
a adejar no escuro
no tímpano da alma
sei de onde vens
para onde vais
ressoa o eco
dos passos
que não deste
a medição
geométrica do vazio
onde me encontro
na bissetriz
do meu desejo
contido
e da tua respiração
no perímetro
dessa ausência
dolorosa
que ouço
em silencioso
recolhimento.

Lisboa, 17 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

                                               "Quietude Bleu au Chat" por Emile Bellet



quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Desespera

Meu amor
enquanto esperei por ti
no café
bebi uma garrafa de água 
sem gaz.
Depois em desespero
pedi um whiskey
de malte 
sem gelo.
Depois bebi, bebi
até me esquecer
porque estava ali.
Até que tu 
me convidaste 
a sair sem ti,
pois estava a causar
mau ambiente.
Eu já não te
reconheci.
Já estavas meu amor,
tão sóbrio de ti
e tu ainda
sem mim.

Lisboa, 16 de Janeiro de 2014

Carlos Vieira

O território



O final da noite
eu, o rafeiro, a lua
a coreografia
é sempre igual,
aquele ladra àquela
do meio da rua
como um qualquer
ser humano,
ela olha-o atónita
como um animal
sem nada a dizer.
Eu vejo a aldeia
ou melhor o mundo
de pernas para o ar
como um astronauta,
a lua no céu a ladrar
e na rua o cão
a levantar a perna
deixando aqui e ali
o brilho amarelo
e húmido
da lua cheia.

Lisboa, 16 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira



                                                         Rufino Tamayo: “Moon Dog”