sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Instantâneo


Mesmo aqui em frente, é meio-dia, 10 de Janeiro, fixo-me no pássaro amarelo a esvoaçar, à volta de uma flor vermelha. Podiam ser um canário ou uma rosa mas não eram, não sei o nome, nem de um nem de outro, o que pode tornar tudo mais misterioso. De repente, o pássaro caiu fulminado e a flor desabrochou, podia ter sido assim, mas não foi. Não, a flor não ficou depois ali a pairar, sobre aquele pássaro morto, ambos seguiram o seu destino. Para embelezar a história daquele momento, precisamos de misturar na dose certa, um pouco de mentira mas que seja verosimilhante, fica bem o verde do cedro como pano de fundo, um pingo de veneno, não se pode morrer de AVC, um pouco de amor sem lamechices, a poesia deve ser lenta e a morte súbita, sem muitas explicações e depois bebê-la de um trago.

Lisboa, 10 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira



                                       
                                               Jan Zaremba, “Pássaro amarelo, flor vermelha”

Noites em branco



Subo à volta de mim
como uma escada em caracol
trancou-se a porta do torreão
estou preso no nevoeiro
a memória da minha mão
procura-te entre lençóis
por onde agora desço.

Lisboa, 10 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira


Fotos de Rudolf Bonvie

Viagens XVI



Andarilho que pragueja,
ao escrevinhar
esbraveja.

Lisboa, 11 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira


Cães com nome





Não sei quem te perdeu
se eu se outro alguém
— oiço cães velhos
a ladrar lá fora,
os mesmos cães de sempre
que tu também ouvias
abafadamente pela janela,
com o teu ponto cruz
as minhas telas
os nossos filmes e CDs,
a nossa casa,
o nosso lar,
os nossos cães





CASA DA MISERICÓRDIA



O pai fuzilado.
Ou, como diz o juiz, executado.
A mãe, a miséria e a fome,
a instância que alguém lhe escreve à máquina:
Saludo al vencedor, Segundo Año Triunfal,
Solicito a Vuecencia deixar os filhos
nesta Casa da Misericórdia.

O frio do seu amanhã está numa instância.
Os orfanatos e hospícios eram duros,
mas ainda mais dura era a intempérie.
A verdadeira caridade dá medo.
É como a poesia: um bom poema,
por mais belo que seja, tem de ser cruel.
Não há mais nada. A poesia é agora
a última casa da misericórdia.

Joan Margarit - "Casa da Misericórdia"(tradução de Rita Custódio e Àlex Tarradellas). Entrocamento: OVNI, 2009.

Anjos apaixonados


Quando os anjos se apaixonam
dançam nas cabeças de alfinetes,
lançam-se em bolas de fogo, ou permanecem
submersos na poça durante horas.

Por vezes até golpeiam os punhos
com lâminas de barbear ou lascas de madeira
não conseguindo, claro, rasgar a delicada pele.

Pois, na ausência de sofrimento ou de entusiasmo,
de que outro modo emulariam o nosso amor?


Pat Boran, Grisu nº 1


O Medo


O medo era uma herança incómoda na vida do Senhor Ibsen. Não só o medo que os outros podiam sentir por causa dele, mas o medo que ele sentia na análise vulnerável do seu comportamento íntimo e emocional. Tinha um profundo horror às suas próprias reacções, embora fosse capaz de fazer a previsão da gravidade do seu estado de espírito. Intuía quando um infeliz diálogo se desviava para uma zona de violência, sem no entanto conseguir reprimir a sua ira contra alguém. Nunca o Senhor Ibsen poderia controlar o medo que sentia porque o medo era o único sentimento que o ligava à infância e aos pais. Em momentos infectados de maldade, quando a vida dos dois parecia rodopiar num ralo infernal, o Senhor Ibsen considerava a Rita como modelo de caracterização da própria mãe, e dessa forma sentia-se incomodado por tantos estragos causados pela sua consciência devoradora. O que ele deixava escapar do seu comportamento agressivo podia ser entendido por uma sequência de cópias ou representações de atitudes e situações desencadeadas durante a infância, sentindo a presença da Rita como algo precariamente humano e exposta ao seu instinto fulminante e esmagador. O Senhor Ibsen incomodava-se cada vez mais com o seu medo indecente desempenhado pelos seus actos recheados de insanidade moral. Sempre que ele e a Rita se enfrentavam, a mãe e o pai surgiam num ponto transtornado do palco na sua memória como duas silhuetas que representassem uma cena a ameaçar a vida numa complicada ciência de inutilidades conjugais. Havia em tudo o que ele observava diante daquele palco de representação familiar, em todo aquele espaço íntimo e dramático, uma monstruosidade real que o obrigava a meditar sobre a cenografia do medo. O medo que ele transportara da infância e que agora o dominava por completo, corroendo numa alucinação triste e magoada toda a trama dos primeiros tempos de confiança e amor. Tudo a ficar sem história na sua vida, o medo a transformar-se na imagem da mãe que devora a sua própria cria. E o tempo abatia-se sobre ele e sobre todos os que viviam com ele como um caminho cheio de pó. Como um pano que desce sobre um palco onde o silêncio tem a orgulhosa tarefa de ocultar quem fomos e em que espécie de pessoas nos tornámos.

Em Brutal
Ulisseia, 2011