quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Quando o homem entra na mulher (Anne Sexton)

Quando o homem 
entra na mulher, 
como a rebentação 
batendo na costa, 
uma e outra vez, 
e a mulher abre a boca de prazer 
e os seus dentes brilham 
como o alfabeto, 
Logos aparece ordenhando uma estrela, 
e o homem 
dentro da mulher 
ata um nó, 
de modo que nunca mais 
possam voltar a separar-se 
e a mulher 
trepa a uma flor 
e engole o seu pecíolo 
e Logos aparece 
e solta os seus rios.




Este homem, 
esta mulher 
com o seu duplo desejo 
tentaram atravessar 
a cortina de Deus 
e conseguiram-no por um instante, 
embora Deus 
na Sua perversidade 
desate o nó. 

H


Sei que dez anos nos separam de pedras 
e raízes nos ouvidos 

e ver-te, ó menina do quarto vermelho, 
era ver a tua bondade, o teu olhar terno 
de Borboleta no Infinito 

e toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço 
em que tu eras uma estrela que caiu 
e incendiou a terra 

lá longe numa fonte cheia de fogos-fátuos. 

António Maria Lisboa, in "Ossóptico e Outros Poemas" 



História pouco digna de um boletim clínico



Ontem pediu comprimidos para dormir ao seu pneumologista.
Ele perguntou-lhe, se tinha algum problema, se já tinha tomado alguma vez. Disse-lhe que não, nada em especial, o que era verdade. Que já havia vinte anos que não conseguia dormir e que havia noites em que sonhava a noite inteira. Tal não tinha coincidido com qualquer acontecimento especial. Pareceu-lhe agora que vinte anos, talvez seja demais. 
Se isto for considerado doença, para além da asma, tinha outra que o incomodava particularmente, eram os gases, que se tem tornado, cada vez mais difícil de gerir, em família, em sociedade.
Referiu ao médico que considerava que o seu problema de flatuências, seria inato, pois tinha muito presente a recordação da sua avó, a protestar veemente as inconvenientes exortações de odores e sonoras do seu avô comerciante, ao que o mesmo alegava em sua defesa, com menos vergonha do que seria aconselhável. " Mulher, ninguém mos compra tenho que os dar".
No fundo o seu boletim clínico reduz-se a quatro problemas, muito interligados e socialmente desconfortáveis, que diga-se, não é coisa pouca. O controlo e a falta de ar e de sono, bem como o ressonar, digamos que o seu organismo vs metabolismo convivia mal com o ar que se respirava. Estava no entanto convencido, de que o problema era apenas seu, não seria do ar ou de alguma sociedade.

Lisboa, 1 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE (Mário Cesariny)





Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte      violar-nos      tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas      portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
     
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida      há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
     
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
     
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar

Citação

Uma coisa é o amor, outra é a relação. Não sei se, quando duas pessoas estão na cama, não estarão, de facto, quatro: as duas que estão mais as duas que um e outro imaginam.


António Lobo Antunes

Je me suis lavé...


Je me suis lavé, de nuit, dans la cour,
Le ciel brillait d'étoiles grossières.
Leur lueur est comme du sel sur la hache,
Le tonneau, plein jusqu'au bord, refroidit.

Le verrou est tiré sur le portail
Et la terre, en conscience, est rude.
De trame plus pure que la vérité
De cette toile fraîche, on n'en retrouvera pas.

Dans le tonneau, l'étoile fond comme du sel
Et l'eau glacée se fait plus noire,
Plus pure la mort, plus salé le malheur,
Et la terre plus vraie et redoutable.

1921
             Ossip Mandelstam

Anne Perrier dans la royauté fragile de vivre

Anne Perrier dans la royauté fragile de vivre

Autour de moi les grandes fleurs 

Anne Perrier

Muselées du jour
Mon cœur comme la mer
Se retire
Est-ce midi
Minuit ?
L'heure pleine de feuilles mortes
Plie

in Anne Perrier, par Jeanne-Marie Baude Lettresperdues (1971) © Seghers 2004, p.188


Toutes les choses de la terre
Il faudrait les aimer passagères
Et les porter au bout des doigts
Et les chanter à basse voix
Les garder les offrir
Tour à tour n'y tenir
Davantage qu'un jour les prendre
Tout à l'heure les rendre
Comme son billet de voyage
Et consentir à perdre leur visage

ibid Pour un vitrail (1955) Pierre Seghers , Paris p.155