quarta-feira, 18 de dezembro de 2013
Aves haiku I
Só porque andava de calções
Me lembro do chilrear dos pintassilgos
Num campo de urtigas.
Lisboa, 18 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
terça-feira, 17 de dezembro de 2013
Retrato do homem bom
Grita nele
um secreto impulso
o esboço de raiva
da raiz que habita
submersa
sob a pele
na véspera
da explosão
dos átomos
no seu rumo
à maior solidão
fere-se
nos estilhaços
do tempo
no gume
da mácula
regressa
ao esquisso
precário
entre o princípio
do mundo
e o sono
dos justos
dentro de si
o vulcão
cauterizou
com seus lábios
ardentes
as chagas vivas
da sua vida
agora indeléveis
e desperta
todas as dores
dos homens
que lhe revolvem
as entranhas.
Cresceu
nesse interlúdio
num berço
de rudimentos
de ternura
e rendimento
mínimo
e tecido escasso
de gestos contidos
na dúvida
e na alegria breve
da benevolência
que no seu rosto
enrugado
ainda aflora
e depois esquece
perante a insistência
do silêncio
ao fundo do túnel
a luz bruxuleante
de um futuro
que esmorece
enquanto
a dor vincada
no seu peito
do sonho
onde cabem
todos os homens
desmesurado
cresce.
Lisboa, 17 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Solitary Man, de Linda Burgess
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
Sei de onde vem o mar
Os gonzos da porta
a ressoar.
A exclamação da tranca
que se levanta.
A chave
é um pássaro
que entra
na escura solidão.
Poderia haver
um cheiro acre
a maçãs,
irrompendo,
apoderam-se de nós
como se fosse um
cão que regressa da infância.
A luz
vai abraçar
os móveis e as louças,
no teu mundo
tudo está em ordem.
Vi as ondas cintilantes
do teu olhar
dirigirem-se para mim.
Enquanto
entrava dentro de casa,
dentro de ti,
o mar
fugia pela janela.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
" Reclinig Female With a Cat" Pintura de Max Pechstein
quinta-feira, 12 de dezembro de 2013
Conluio de cores
Todos os anos
o mesmo tapete dourado
de folhas
sobre o musgo
à superfície do tanque
o ouro coalhado
que caiu das faias
e ontem
por cima da filigrana
das horas
um fino lençol
de geada
sobre o muro
do esquecimento
ergue-se o sol
vermelho
leio outra vez
nos teus lábios
entreabertos
o ocaso
da conspiração
que em saliva
se dilui
e fica depois
atravessada
na garganta.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
Contrabandear
Fui
à feira
e no ângulo
morto
dos panos
das tendas
teu rosto
envolto
num lenço
de seda
falsa
escondia
o tráfico
de um olhar
sem preço
preso
a um brinco
de pérola.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Rapariga com brinco de pérola de Johannes Vermeer
terça-feira, 10 de dezembro de 2013
Calafrios
Calafrio
é a palavra
que agora desce
pelo teu dorso
um súbito risco
um rio breve
que contorna
e acontece
na orla
do teu ombro
enquanto
no teu leito
se ergue
em deltaum silêncio
de fogo solto
que escala
e consome
o frémito
do vazio
a transbordar
o sono
das margens
sequiosas
do teu peito
onde se oculta
o rouxinol
e qualquer palavra
na tua voz
é um calafrio
suave a morder
de sal
o lânguido
vértice
reencontro
no vórtice
loquaz
da tua foz.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Jean-Antoine Houdon, La Frileuse / Winter (The Shivering Girl), 1783, marble. Musée Fabre, Montpellier
sábado, 7 de dezembro de 2013
Pequenos feitos
Lembro-me que cavalgávamos as
encostas, de sabermos todas as árvores de fruto pelo caminho, de dançarmos com
as videiras e mergulharmos no Pego do Gaivoto, de “armarmos aos pássaros” nas
Lameirinhas, da primeira única vez que vi e fui mordido por uma sanguessuga,
naquele tempo e idade tenho registado essa aventura incomensurável, enquanto apanhávamos
caracóis para dar aos patos.
Na minha memória tenho bem
presentes, as abelhas saindo, repentinamente, de buracos do tijolo do terraço
da tua casa e aqueles pequenos seres atacarem furiosas, os pequenos seres que
nós éramos, depois o brilho do sol nas lâminas frias das facas de cozinha, a
aplacarem a dor do ferrão das suas picadas, sinais inequívocos das suas
investidas bem-sucedidas.
Sei da tua pasteleira antiga
somente com os aros, do chinfrim que fazia pelo meio da aldeia, sem travões,
naquela altura passava ali um carro de hora a hora, quando acabámos os dois e a
bicicleta na lagoa e sei da enorme sova que levei, por ter assim sujado o fato
de domingo.
Recordaste dos nossos ataques à
escola primária e de nos apoderarmos dos cadernos arquivados dos alunos,
troféus libertados do sistema, vitória sobre as reguadas da professora, no
sótão da minha casa, recordo-me daquela caligrafia dos primeiros tempos e nunca
me esqueci do aroma da tinta permanente, equilibrando-se periclitante nas
linhas paralelas das folhas e dos números aprisionados nos cadernos quadriculados.
Lembras-te daquelas noites, em
que distribuíamos o caldo de morcela aos vizinhos, uma mão no recipiente, outra
para apanharmos pirilampos, a cabeça no céu estrelado e as fintas e saltos às
poças de água.
Sei que um dia, tu, as tuas irmãs
e toda a família desapareceram, rumo a uma aventura maior e apenas fiquei com
todas estas memórias, recordações como se fossem jardins suspensos, de uma
qualquer Babilónia, onde nas noites agora mais longas da aldeia, a todos vos
revia, imaginando.
Certo é que as aventuras deixaram
de ser as mesmas e tu foste talvez naquele tempo, o irmão mais velho, para
junto de quem o meu pai foi meses mais tarde, tu agora tinhas encontrado nas
trincheiras abandonadas da segunda guerra mundial, outras brincadeiras que me
irias contar quando regressasses, no próximo Verão.
Já me esquecia que hoje fazes
anos e depois de tantos anos meu amigo e primo Artur, não há maior alegria que
podermos e termos tantos feitos para contar.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
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