sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
Sei de onde vem o mar
Os gonzos da porta
a ressoar.
A exclamação da tranca
que se levanta.
A chave
é um pássaro
que entra
na escura solidão.
Poderia haver
um cheiro acre
a maçãs,
irrompendo,
apoderam-se de nós
como se fosse um
cão que regressa da infância.
A luz
vai abraçar
os móveis e as louças,
no teu mundo
tudo está em ordem.
Vi as ondas cintilantes
do teu olhar
dirigirem-se para mim.
Enquanto
entrava dentro de casa,
dentro de ti,
o mar
fugia pela janela.
Lisboa, 13 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
" Reclinig Female With a Cat" Pintura de Max Pechstein
quinta-feira, 12 de dezembro de 2013
Conluio de cores
Todos os anos
o mesmo tapete dourado
de folhas
sobre o musgo
à superfície do tanque
o ouro coalhado
que caiu das faias
e ontem
por cima da filigrana
das horas
um fino lençol
de geada
sobre o muro
do esquecimento
ergue-se o sol
vermelho
leio outra vez
nos teus lábios
entreabertos
o ocaso
da conspiração
que em saliva
se dilui
e fica depois
atravessada
na garganta.
Lisboa, 12 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
quarta-feira, 11 de dezembro de 2013
Contrabandear
Fui
à feira
e no ângulo
morto
dos panos
das tendas
teu rosto
envolto
num lenço
de seda
falsa
escondia
o tráfico
de um olhar
sem preço
preso
a um brinco
de pérola.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Rapariga com brinco de pérola de Johannes Vermeer
terça-feira, 10 de dezembro de 2013
Calafrios
Calafrio
é a palavra
que agora desce
pelo teu dorso
um súbito risco
um rio breve
que contorna
e acontece
na orla
do teu ombro
enquanto
no teu leito
se ergue
em deltaum silêncio
de fogo solto
que escala
e consome
o frémito
do vazio
a transbordar
o sono
das margens
sequiosas
do teu peito
onde se oculta
o rouxinol
e qualquer palavra
na tua voz
é um calafrio
suave a morder
de sal
o lânguido
vértice
reencontro
no vórtice
loquaz
da tua foz.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Jean-Antoine Houdon, La Frileuse / Winter (The Shivering Girl), 1783, marble. Musée Fabre, Montpellier
sábado, 7 de dezembro de 2013
Pequenos feitos
Lembro-me que cavalgávamos as
encostas, de sabermos todas as árvores de fruto pelo caminho, de dançarmos com
as videiras e mergulharmos no Pego do Gaivoto, de “armarmos aos pássaros” nas
Lameirinhas, da primeira única vez que vi e fui mordido por uma sanguessuga,
naquele tempo e idade tenho registado essa aventura incomensurável, enquanto apanhávamos
caracóis para dar aos patos.
Na minha memória tenho bem
presentes, as abelhas saindo, repentinamente, de buracos do tijolo do terraço
da tua casa e aqueles pequenos seres atacarem furiosas, os pequenos seres que
nós éramos, depois o brilho do sol nas lâminas frias das facas de cozinha, a
aplacarem a dor do ferrão das suas picadas, sinais inequívocos das suas
investidas bem-sucedidas.
Sei da tua pasteleira antiga
somente com os aros, do chinfrim que fazia pelo meio da aldeia, sem travões,
naquela altura passava ali um carro de hora a hora, quando acabámos os dois e a
bicicleta na lagoa e sei da enorme sova que levei, por ter assim sujado o fato
de domingo.
Recordaste dos nossos ataques à
escola primária e de nos apoderarmos dos cadernos arquivados dos alunos,
troféus libertados do sistema, vitória sobre as reguadas da professora, no
sótão da minha casa, recordo-me daquela caligrafia dos primeiros tempos e nunca
me esqueci do aroma da tinta permanente, equilibrando-se periclitante nas
linhas paralelas das folhas e dos números aprisionados nos cadernos quadriculados.
Lembras-te daquelas noites, em
que distribuíamos o caldo de morcela aos vizinhos, uma mão no recipiente, outra
para apanharmos pirilampos, a cabeça no céu estrelado e as fintas e saltos às
poças de água.
Sei que um dia, tu, as tuas irmãs
e toda a família desapareceram, rumo a uma aventura maior e apenas fiquei com
todas estas memórias, recordações como se fossem jardins suspensos, de uma
qualquer Babilónia, onde nas noites agora mais longas da aldeia, a todos vos
revia, imaginando.
Certo é que as aventuras deixaram
de ser as mesmas e tu foste talvez naquele tempo, o irmão mais velho, para
junto de quem o meu pai foi meses mais tarde, tu agora tinhas encontrado nas
trincheiras abandonadas da segunda guerra mundial, outras brincadeiras que me
irias contar quando regressasses, no próximo Verão.
Já me esquecia que hoje fazes
anos e depois de tantos anos meu amigo e primo Artur, não há maior alegria que
podermos e termos tantos feitos para contar.
Lisboa, 7 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Canção de despertar para a Consti
Bebo da memória,
na margem
dos seus lábios,
que contornam
o fogo, fogo, fogo
e a água, água, água,
a solidão
das primeiras palavras
que reconheço
porque dizem
o puro sabor
dos elementos
depois da navegação
no seu sorriso
emergente.
Dos teus caracóis louros
em catarata
evadiam-se peixes
na sua ânsia
de delatar segredos
e construir
o país dos sonhos
dos mais subliminares
materiais
arquitectados
em clareiras
de fogo, fogo, fogo
e grutas
de água, água, água
de onde espreitavam
os teus olhos
pérolas incrustadas
pequenos animais indecisos.
Lembro-me
que tinhas uma
“t-shirt” amarela
e umas jardineiras
aos quadrados
nesse tempo
brincavas com o fogo
com o mesmo à vontade
com que hoje
se brinca com a fome
e no lusco-fusco
de um fim de tarde
bebes um copo
de água
e a noite vinha
de mansinho
comer-te à mão
tu depois
tiveste medo
da tua própria sombra.
Nos teus olhos grandes
de criança
perpassavam
constelações
legendas
que remetiam
para animais mitológicos
sinais
de fogo, fogo, fogo
e para o doce murmurar
e insistência
de água, água, água
anunciando o rumor de outras
galáxias.
Desviavas
o imenso caudal da água
e de dor
e levavas o teu pequeno mundo
à trela
com tuas pequenas mãos
e delas em concha
nasciam os mares interiores
e a correria imprudente
dos rios intrépidos
na tua diligência
de menina
acompanhava-os
com o olhar fulgurante
de fogo
e de imprevistos
e uma sôfrega
sede de vida
sem julgamento.
Lisboa, 3 de Novembro de 2013
Carlos Vieira
domingo, 1 de dezembro de 2013
Aparição
Ali estavas
ao cimo das escadarias
da manhã
como se viesses ver o mar
vestias aquelas jeans
de subir às árvores
de apanhar os frutos
e tinhas duas tranças
uma de cada lado
havia uns segundos
em que ainda encadeada
a tua a mão de pássaro
voava da maçaneta
e pousava no sobrolho
avançavas depois
destemida
um passo atrás do outro
a tua blusa branca
desfraldada
dois seios cúmplices
adivinhavam-se
firmes
seguias
pelo trilho de luz
que os carvalhos
seculares
também dois
também firmes
haviam coado
apenas um rafeiro
a destoar
mordia-lhe as canelas
ladrava
prendia-a à terra
e lhe deu
um pouco de sangue
de ferida
de poesia
e o espectro enrubesceu.
Lisboa, 1 de Dezembro de 2013
Carlos Vieira
Imagem de autor desconhecido
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