quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Bacalhau "com todos"




O bacalhau diziam-me ser da Noruega, aliás, cada posta parecia um fiorde branco, agora rodeado de um mar de azeite de Castelo Branco.
Eu era pequeno, as batatas a murro, as cebolas, os dentes de alho e os brócolos eram ilhéus, rochas e recifes, os ovos de codorniz eram bóias de sinalização, os rostos sorridentes e ali e acolá a salsa que tinha apanhado no quintal lá de casa, numa noite de chuva e de neblina e um resfriado pelo meio.
Soltava-se em lascas, o sol da meia-noite, sem espinhas, o bacalhau devia ser “com todos”.
Agora marquei falta ao pai João e ao tio Francisco e outros distraídos, certamente entretidos, a desfiar neves eternas, embevecidos de auroras boreais.
Agora cada vez mais, cada um para seu lado e cada vez menos bacalhau.

Lisboa, 14 de Novembro de 2013
Carlos Vieira


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Sem sabor



- Matilde, pelo menos prova os cogumelos.
Não sabem a nada!
- E os venenosos, qual é o sabor?

Lisboa, 13 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

Poema sem tempo para pensar



- Mãos ao alto, 
isto é um assalto!
E em voz baixa:
- O dinheiro ou a vida!
- Nada de brincadeiras!
Aos poucos entra pelo cano,
por aquele buraco negro.
Sabe lá agora
se era um revólver
ou uma pistola.
Sei apenas
que via vida e a morte
num segundo.

Lisboa, 13 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

Tangente




Dardejam reflexos 
de um sargo 
pendurado no anzol
a ele se associa
na linha do horizonte
o sol em agonia
compõe a rede
da noite o pescador
desfaz os nós
Sísifo preso à lua
à fronteira da falésia
ao seu limite.

Lisboa, 12 de Novembro de 2013
Carlos Vieira



sábado, 9 de novembro de 2013

Doméstico fulgor



no esmalte do espelho
esfuma-se
o teu sorriso
de bisel

turva-se
o teu rosto
na memória
propaga-se
no espanto
pousas o talher

ao fundo
a porta entreaberta
tu
és o gume
da espada de luz
que sorrateira
se esgueira

és o oriente sôfrego
um espasmo
que antecede
o medo
e o aroma das especiarias
sei-te
flor afogueada
por cima
das ervas

reconheço-te
no sabor
dos espargos selvagens
naquela réstia de luz
crua

pungente
é o teu tronco solar
húmido esplendor
a gotejar
água do banho


corcel de turquesa
que incendeia
os fantasmas
que te espreitam
na penumbra
do corredor

serás a bissetriz visionária
de um coral
contra a blasfémia
e o azedume
na janela
bebes o chá
em contraluz

pantera
na festa da cópula
que progride
furtiva
e que no meu peito
desagua
dilema
que se desafaz
em leito
de espuma e sal
diária
e renovada
luta
sem tréguas
que apazigua.

Lisboa, 9 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

                                                “Mulher sentada em azul” Jean Spitzer

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Palavra derradeira



Podia ser no Outono
e descortinar-te
a anunciares
uma revoada de pássaros
algures
frágil e inquieta
entre o fumegar
das chaminés
e a ressonância
de prata das oliveiras
a partir da reentrância
da encosta
da última vez
partia
um rio de lume
da tua boca.

Devagar 
aproximo-me
a coberto
do fogo
e surpreendo
a nudez diáfana
das tuas espáduas
enquanto crepitam
efémeras
folhas de eucalipto
na urgência
das libações
e da tua febre
entretanto
uma tempestade
perpassa
pelo teu rosto
acomete-me
o temor
de te perder.

Prostrar-me-ei
perante
a tua humanidade
confessarei
as minhas fragilidades
a insensatez
da minha volúpia
e pusilânime
vacuidade
serei apenas
mais uma folha
que cai
matéria
que se extingue
e tu podes ser
apenas um perfume
que evola
no desprendimento
desse voo e dessa queda
instantes
únicos de entrega
sopro de eternidade
o teu nome
exangue
na minha boca.


Lisboa, 7 de Novembro de 2013
Carlos Vieira


                                                         Pintura de Dominique Telmon

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Já me faltam as palavras…

Já me faltam as palavras…
Há aquelas que parecem ter dado à costa ou foram resgatadas entre os escombros de um naufrágio, palavras-búzio, seixos redondos e ninhos de pássaro, na rocha escarpada, a salvo dos predadores.
Algumas, mastigo-as em seco, agridoces, não me saem, não as consigo acompanhar ou escrevê-las inteiras, outras, ausentam-se para longe e quando as procuro constato que as perdi, mesmo, nos cada vez mais raros acessos de clarividência ou quando não estou submerso no nevoeiro.
No entanto, existem umas tantas que são tão fiéis como rebanhos, tenho muitas vezes das enxotar de perto de mim, parecem não sobreviver sem mim. Confesso nunca ter experimentado viver sem elas.
Outras, não me deixam respirar, enchem-nos a boca, entram-nos pelos olhos adentro, entopem-nos o pensamento, ficamos ali especados, desamparados, de costas voltadas para o ocaso, quando muito solta-se um murmúrio, uma interjeição.
Depois, há aquelas palavras que ultrapassam a altura da nossa vida e que temos dificuldade em nomear e as que podem já ser encaradas, como se fossem o princípio da decadência, primeiras sementes da nossa morte.
Deitam-se connosco e revelam-nos seus corpos desnudos, sem nenhuma afeição e pudor, em decúbito dorsal, calam-nos e revolvem-nos as entranhas, despertam-nos as memórias, os últimos ecos das ondas a perseguirem as gaivotas.
Chamo por elas perdidas nos campos, às voltas com os pássaros, brilham cor de azeviche como azeitonas depois da chuva, no entanto, já não me obedecem como quando era criança, em que as inquietava de bichos e armadilhas.
Agora soletro-as, decomponho-as, ausculto-lhe o rumor que se desprende débil, como se fosse uma fonte surpreendente, no mármore da parede deste tempo, mas este meu desvelo parece ter apenas como penhor o seu desprezo e parece-me ouvi-las segredar com desdém “desiste, deixa-nos respirar!”.
4 de Novembro de 2013

Carlos Vieira