quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Close-up

"Persona" Ingmar Bergman


"Existem três máscaras:
a que pensamos que somos,
a que realmente somos,
e aquela que temos em comum.”
Jacques Lecoq ...




Close-up

Um piscar de olhos
e o plástico do sorriso
que se afivela de amarelo
no rosto
impassível
perante a queda das maçãs
apodrecendo a memória
e a falsa inocência
das manhãs.

Daí lavo as minhas mãos!

Em contraponto
aquele outro
de um esporádico azul
rasgado
virado para a única embarcação
sobre uma nesga de mar
ocaso de precário beijo
que lançou âncora
na profundidade de um olhar
num crepúsculo de cobre

Frente a frente
sem pestanejar
sem decoro
a puta da vida
onde não decoro
e confundo
o papel
presa ao rosto
arrasto esta máscara
decorativa !

Oportuna esta ausência de memória.


Lisboa, 17 de Outubro de 2014
Carlos Vieira

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Cavalo branco em paisagem gelada



Era uma vez
um cavalo branco
a trote
as crinas de neve
das narinas
deitava
fumo branco.

Tinha
uma violência
contida
de realidade
de coice
de estrelas.

Leva
pela rédea
o horizonte
até ao futuro.

No dorso suave
da montanha
o equídeo
perde-se
de vista
e do coração.

Estende-se
a paisagem
a neve
o cavalo branco
estende-se
na neve
vai tosando
a paisagem..


Selvagem
de freios nos dentes
torna-se
o branco
discreto dono
do deserto branco
do mundo.

Cada vez se torna
mais difícil
distinguir
o animal
o homem
após a tempestade
nesta planície
tão gelada
tão deserta
de pegadas
de seres vivos
e de humanidade.

Quase consigo ouvir
a sua respiração
sob a página
o poema
a resfolgar.

Lisboa, 16 de Outubro de 2013
Carlos Vieira

Lisboa

                                           “Cavalo branco na neve” de autor desconhecido

História com final infeliz



Entre os números infinitos
asfixiados
ali e acolá parecem encontrar
outro rimo
outro significado
para as palavras
um silêncio familiar
e absurdo
depois de toda a aritmética
encontram-se no final
do mês
sem palavras
e no caos absoluto
amarrados
a uma solução
cercados
do mais que perfeito nada.

Lisboa, 16 de Outubro de 2013

Carlos Vieira

domingo, 13 de outubro de 2013

Noite de breu à procura

                                                                                          Não vás p'la noite mansa, assim, tão complacente,
                                                                                             A velhice deveria arder com raiva até ao fim do dia;
                                                                             Raiva, raiva contra a luz que vai morrendo.
                                                                                                                                                             Dylan Thomas




Decifro
um sussurro
nos braços
da constelação
fulgente
e agora corro
talvez
atrás do timbre
da tua voz.

Observo
o relâmpago
num ápice
que ilumina
inolvidável
a tua nudez
e na demência
que se segue
de súbito
vejo
tudo a nu.

Ausculto
o teu coração
magnético
bússola
de tanto norte
e de nenhum
de tanta viagem
por fazer.

Prossegue
o relógio
biológico
e é fraca
a carne
que vai enganando
a morte
para esta mentira
de estar
quase vivo.

Chega um rio
e uma palavra
à noite
o teu olhar
que partiu
aqui estou
a viver
no outro lado
do mundo.

Esqueci-me
da senha
já não posso
entrar contigo
madrugada
a dentro
tão lúcido
e tão distante
por ti
vou continuar
por aqui
em busca da palavra
irrepetível
na noite branca.

Lisboa, 13 de Outubro de 2013
Carlos Vieira


                                                    "Noite branca 2" de Laurent Marre





sábado, 12 de outubro de 2013

Mare Nostrum a céu aberto



Sulcos
de sangue
no rio
no mar
são
rastos
raios de luz

um vulto quase humano
o eritreu
caminha sobre as águas

o murmúrio de tumulto
após a voz rouca
de pregar aos peixes
vésperas 
de sal a sol
e de naufrágio

na noite insaciável
o logro de lâmina
embainhada
afiada palavra
libertando
perfume de âmbar
sem refúgio

saber
o segredo secular
das pérolas
ao regressar
fugir
à rotina do sol
das missangas

ressuscitar
voltando a preencher
o lugar do corpo
que se quis reinventar
na tempestade

saber do insólito gesto
que era uma desajeitada
preposição de flor
uma janela
noutra terra

estudar o logaritmo
da viagem
do beijo
na melodia da espera
da despedida
da coragem

entre o crepúsculo
e as tréguas das gaivotas
partilham-se
centelhas
de um  tempo de esperança
um fragmento
de terra à vista

querer voltar
a esculpir o sabor
do seio túmido
da terra prometida

de amadurecer
um sonho ao relento
mediterrânico

na longínqua longitude
das pedras
em fila indiana
a caminho da alma
etíope
ingenuidade ou espanto
sempre a miragem
sempre descalços
por todos os desertos

é incrível o ruminar 
das águas
no seu leito subterrâneo
e em simultâneo
com a transumância dos astros
incansáveis 
na sua imprestável
vigília dos justos
testemunhando
o intrépido percurso
do coração nas trevas

enquanto isso
fixam-se os vestígios
da crueldade da guerra
nos olhos sem fim
das mães e das crianças 
que deambulam 
entre os escombros
do desencanto
e o reconhecimento
do fundo do mar

amoras ainda brilham
entre espinhos
tornando o silêncio
mais suportável
dele se ergue o canto
e o grilhão dos escravos
volta a ouvir-se a medo
adquire
a tonalidade da pele
o absurdo 
limite do antigo território
das tâmaras

a sua mão descansa
na amurada
na solicitude
na anca
do reencontro
com a vida

talvez pareça desafiar
a feroz presença 
da razão
que impede
a inesquecível
reprodução
de todas as madrugadas

a grandeza
do homem
de desbravar outro
caminho
no rio os raios de luz
no mar juncado
de cadáveres
sulcos de sangue
insurrecto
para eles da vida
apenas sobrou
a coragem de ousar
a vergonha
da europa.


Lisboa, 12 de Outubro de 2013
Carlos Vieira



quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Nua, pura e dura

Nua, pura e dura

Nua
 sem tecidos
sem palavras
apenas
a discrição
do olhar
desagua
um desalinho
de rumos
de cabelos
e de algas
um gesto justo
por todos
os poros
o mais puro
sentimento
um castelo
de areia.

Nua
no dorso dourado
do areal
talvez durma
se esconda
na espuma
talvez
entre as ondas
e os gritos
das gaivotas
se esconda
e se livre
ou desafie
a morte.

Nua
tão quieta
tão crua
em silêncio
sangra
no horizonte
nuvem caída
em zona
de rebentação
tão altiva
e tão em perigo
de vida.

Nua
corpo
fogo aceso
árvore de luz
pássaro atento
da manhã
último limite
das forças
delta
de saber
e sal-gema
esplendor
da carne
na margem da pele
tatuada
de alegria.

Lisboa, 9 de Outubro de 2013
Carlos Vieira
 
Pintura de Juan Miró

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Sem recreio e sem medo

A madrugada
de “berlindes” nos bolsos
em Outubro
de pedaços de arrabalde
e telhados
de vidro embaciado
na cabeça
a espiral do pião
que irrompia no  nevoeiro
e do tinteiro
em tinta permanente
e não tinha medo
de ninguém.

O mata-borrão
a estancar
furtiva lágrima
suave  
sobre o pastel
de cores de aldeias
a espreitar
os ninhos
tecidos a tinta da china
que um homem
não chora.

Na memória  da horta
permanece
o focinho álacre
branco sujo
de um porco-espinho
que tinha medo
da sua própria
sombra.

Oiço os aparos
e a incerteza
dos lápis de carvão
a arranhar
a grandiosa solidão
da raíz quadrada
a convocar
o conhecimento.

Enquanto
tirava dos bolsos
as mãos
escondeu-se
o porco espinho
levantou-se
o nevoeiro
e a sépia do bosque
da infância
e dos selos do correio
foi num abrir e fechar
de olhos.

O giz
a iluminar a ardósia
a escrita carregada
de um país
a 6 de Outubro
um poema
a preto e branco
sem dinheiro
na altura
fazia as contas em pé
não tinha medo de ninguém
nos bolsos
tinha um abafador.

Lisboa, 6 de Outubro de 2013
Carlos Vieira