sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Protesto o direito ao teu silêncio

O teu silêncio cúmplice
tem a profundidade das viagens dos grandes cetáceos
e dos sonhos dos grandes homens
Que nem sonham dos grandes perigos
que os cercam
O grande silêncio de te poder escutar 
em todos os objetos da nossa pequena casa
que após o teu toque suave 
respiram o amor das tuas mãos
todo o sono dos justos 
e a insónia dos que sofrem em silêncio
desagua no grande rio das palavras caladas e por dizer
afluente do teu silêncio aflito
De mãe sem respostas aos estímulos
incrédula perante os sintomas
que sofre sozinha todas as ausências
e o silêncio ancestral das memórias
onde reencontro 
envolto de grande mistério do teu corpo nu
debaixo da árvore
onde adormecendo regresso 
e te reinvento numa breve alegria
iluminada de um frémito de folhas
e de pássaros
Reconstruo-te a partir do vazio dos amigos
que já partiram
e dos outros que nunca mais reencontrei
Dessa emoção silente e imaterial 
farei o molde e os nós
de onde renascem e se desatam os abraços
e se vai quebrar o silêncio deste mesmo mundo
Neste mar bravo da vida
e grave silêncio dos antepassados
que deixámos de ouvir
daquele dos injustamente acusados
e dos que vão esboçando gestos 
perante a surpreendente dificuldade das palavras
O teu silêncio meu amor é uma flor desabrochando 
para os que vão partir 
e também para os que estão a morrer
e cujas palavras
não vêem o sol de um último sorriso
Estar aqui 
olhar para ti e por ti e está tudo dito
Minha imensa graça de um poema sem palavras
e em que todas as palavras encontram o seu lugar
o seu ritmo
Tu és meu desejado ermitério 
e meu silêncio
e meu celebrado protesto
daqueles que não tem 
nunca terão voz.

Tojal, 6 de Agosto de 2013
Carlos Vieira

sábado, 3 de agosto de 2013

Linhas cruzadas


I
Esta noite vi passar 
por três vezes o TGV
nos arredores da terra de ninguém
num ápice
percorria a distância
que separava o sonho
deste apeadeiro.

II
Como seria o mundo se Napoleão
não fosse devorado pelo ciúme
e Josefina estivesse
por ali
disponível
durante a campanha
no wagon lit
imperial.

III
E se Van Gogh
pudesse ir amiúde
de Arles a Paris
e esse comboio
fosse também a sua vertigem de tempo
a lâmina da navalha
a volúpia
que o isola da paisagem
e a desfaz em pedaços
a cada segundo.

IV
O que iria escrever
Júlio Verne
agastado pelo matraquear
do mundo sobre carris
por esta aventura
com passagem de nível e horários
de uma locomotiva arquejante
que se afasta do cais.

V
Nesta noite de insónia
arquivei de vez
este projeto de sonho
em bitola europeia
substituindo-o pela linha do Tua
submersa no futuro
que se cruzava
com tantas outras linhas
que percorri
por vezes
apenas na ardósia e giz da infância
e no carvão da Serra dos Candeeiros
linhas de vida abandonadas
aromas de vindima
e óleo queimado.

Lisboa, 3 de Agosto de 2013
Carlos Vieira


domingo, 28 de julho de 2013

Abandonar-me...

Abandonar-me
à circunstância das tâmaras
dos seus seios
tornear a sua pélvis
num ultimato do magma
incandescente
percorrer o roteiro
dos seus odores
contemplar-te
sem me compadecer
depois erguer-nos
soberbo
sobre a madrugada
sem desfalecer
sem sombra de pecado
desferir o golpe fatal
que derrama sobre nós
inapelável
uma estrela interior
que nos guia
e que nos cega.

Lisboa, 28 de Julho de 2013
Carlos Vieira

Imagem de autor desconhecido

Chuva de Verão



Caiem pérolas 
de espanto
solfeja o colar
sobre os ombros nus 
a contar a solidão.

No vidro da janela
escorre
um débil adeus
a flor a pulsar
na tua mão.

Oiço lá fora chove
e cá dentro 
sobem as margens 
de um rio
sem razão.

No terraço
o tamborilar da chuva
o poema
é um coração
de ritmo hábil.

Chove sobre 
o seu silêncio aflito
que dorme
dentro da fome 
de gente ao relento.

Foi o seu regresso 
inesperado
os cabelos molhados
no teu olhar um dia
são quatro estações.

Lisboa, 28 de Julho de 2013
Carlos Vieira


Imagem de autor desconhecido


sábado, 27 de julho de 2013

A desaparecida de John Ford





Acabou de chegar
ao fim do mundo
onde o diabo 
não perdeu 
apenas os cornos
o visco do tempo
escorre da sombra
o pigmento ocre
dos sobrolhos franzidos
mal os distingue
das casas
onde ecoa
o rumor da eternidade
onde acabou de chegar
no coldre
traz a sua alma
com bala na câmara
não tem mais nada
a perder
senão trazer ao colo
o último
legado de um amor
impossível.

Lisboa, 27 de Julho de 2013
Carlos Vieira

"Um homem só pode ser fiel a um juramento"



The Searchers (A Desaparecida) John Ford

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Interlúdio II



Poalha de palavras 
e perfumes 
entre lâminas 
de persianas 
a dissidência do olhar
espreitando 
os biombos de palha
e a firmeza desesperada
levemente curva
dos corpos suados nus
perpendicular
à vigília fresca 
pendente 
dos bambus
ambos atónitos
perante
o musgo do silêncio 
das aranhas
e o húmus de uma luz
ténue que pousa
na sua pele.
.

Lisboa, 24 de Julho de 2013
Carlos Vieira


                                      Imagem de autor desconhecido

terça-feira, 23 de julho de 2013

Portinhola



Soltou-se do trinco
a portinhola
que permitiu 
a fuga do pássaro
a inexistência
ocupa agora a gaiola
por um acaso
deixa quieto o balouço
e o canto da ave
que ouço
suave
é também a luz
à mesma hora
na escola primária
da tarde
e agora
há esse pássaro
perdido lá fora
à solta
sem saber
de uma portinhola
que existe
de um mundo
que passa
por entre as grades
da gaiola.

Lisboa, 23 de Julho de 2013
Carlos Vieira



     

Imagem de autor desconhecido "A luz que nenhuma luz pode prender""