sábado, 20 de julho de 2013

Poema para o futuro presente



Submerge
a esperança
a verdade absoluta
de pés descalços
de regresso
às casas de palafita
vou recuperando
do passado
a oxidada ilusão
do reencontro
em puro
silício e bronze
moldo no presente
a precária ponte
a tenda do instante
primordial
forjando essa textura
ancestral
que arrefece
no murmúrio do vento
e o cego testemunho
das estrelas
vou esculpindo
humano o rumo
preso por arames
enfrento
pretextos de pântano
e uma narrativa
emergente
onde não existe futuro.

Lisboa, 20 de Julho de 2013

Carlos Vieira

Elogio da irrelevância


I

Périplo de erro
partícula fosforescente da tentativa
frágil fragmento
que desce sobre o flanco
da dúvida
um argumento para marionetas
a ousar a fraga
de se furtar ao passo em falso
e num golpe de asa fruir a corrente
ser o pássaro hábil
e o intérprete da flecha
também esse êxtase ascendente
de ser fulminante.

II

Colher na viagem as flores de fogo
em propósitos de papoilas
e fósforos
exultando essa frágil alegria
das tentações
que nos consomem
a precariedade
e a memória das planícies
onde se pernoitou
em silêncio.

III

Perplexos pela paisagem
exuberante
de polpa e do sumo
que se vislumbra na fratura
da peça de fruta
que depois se devora
enquanto
se desconhece o incêndio
e a festa
que alastra nos lábios molhados
na orla de um desejo
na periferia de um tempo
onde dorme uma donzela
mansamente
em lençóis de flanela
e das suas pálpebras
florescem manhãs de orvalho.

IV

Por detrás das persianas
a pantomina de uma estranha solidão
de peripécias e percalços
a orquestra de ruídos domésticos
tão comuns à pauta frugal dos párias
na sua porcelana hostil
das palavras
onde uma febre de orquídeas perpassa
e se não me engano
um pasmo de pérolas habita
vizinha triste
envergonhada da vida
que desiste da luz
na órbita da tentativa.

Lisboa, 20 de Julho de 2013
Carlos Vieira



                                          “Shadow people” de autor desconhecido



quinta-feira, 18 de julho de 2013

Carta para o meu tio “Chico”


Partiste sem dizer uma palavra, dizem-me com grande serenidade, nessa tua forma simples de ser e de partir, sempre a mesma cumplicidade e até agora não te disse mais nada. Que posso dizer? Porque para mim sempre estarás por aí, sempre estiveste por aqui.
Já dissemos quase tudo, durante dezenas de viagens entre o Tojal e Lisboa, altas horas da noite, em que te falava ...para não adormeceres, depois de levares os turistas, os emigrantes brasileiros para o Norte. Foram as minhas primeiras grandes viagens e aventuras de menino, nunca mais me esquecerei da bandeira apagada, onde dizia “Livre” sem aspas.
Lembro-me que também não dizias mais nada, depois do Sporting perder, estendias-me o Record e ficávamos a segunda-feira em silêncio ou dizias, tão-somente, que havia outras coisas, muito mais importantes, recordo-me do tempo que levei a acreditar.
Sem dizermos uma palavra, naqueles domingos de Verão na bancada, enquanto o Leonel Miranda e o João Roque e o Joaquim Agostinho subiam a Calçada do Carriche, uma alegria pedalava na nossa alma e não era preciso nem mais uma palavra.
Tudo isto acabava tantas vezes com uma sandes de “corates” ou magnífico prego no Ramiro. Tempos difíceis onde havia tão poucas palavras que corriam à volta das tristes vidas.
Resolveste ir embora sem dizer nada, nunca gostastes de causar muitos incómodos, agora deixaste-nos de novo a bandeira apagada, de uns tempos sombrios, a dizer “Livre”, esse legado da viagem de uma liberdade que não se vende por dinheiro nenhum, que não se proclama, do mundo ser maior do que aquele para onde nos querem empurrar.
Foste-te embora comigo eternamente devedor, talvez até um pouco ingrato mas como poderia alguma vez pagar-te.
Ficou esse gesto que me ensinou o abc de uma liberdade maior, do homem indiscutivelmente bom, daquele que afirma, na rodada solidária “Quem paga, sou eu!”. Do homem que não esquece, de homem que não se esquece.
Esperei alguma distância e tempo para poder falar de ti, de poder dizer-te, mas nunca nos conseguimos afastar o suficiente dos que vivem dentro de nós ou que já são um pouco de nós.
Porque me recordo das tuas inocentes brincadeiras, voltaste a jogar às escondidas ou perdi-te de novo entre a multidão do mercado e do estádio.
Pregaste-me a partida de não poder acompanhar-te nessa última viagem, nessa última corrida.
Um anjo meu amigo e companheiro, meu tio um homem bom e livre, até sempre!

Lisboa, 17 de Julho de 2013
Carlos Vieira

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Guerra civil II (continuação)


a mancha de óleo
que alastra perigosamente
em velocidade excessiva
na curva  dos sonhos
que se desvanecem
na berma da estrada
de pernas para o ar
na neblina da madrugada

Lisboa, 15 de Julho de 2013

Carlos Vieira

domingo, 14 de julho de 2013

Viagem quase de circum-navegação



O gume da lâmina de sol e sal breve
sulcando um suave vislumbre
o ardil do olhar antes do teu rosto
enunciado pelo rumor da penumbra
o perfume nos seus ombros de coral
no rastilho subtil de um murmúrio
que se soergue a partir do eloquente
guinar das tuas coxas vibrantes
ávidas de silêncio e de luz submersa
de unhas que vão rasgando na pele
o frémito e demência doutros rumos
no gume da quilha indomável o desejo
separando a carne unindo os mundos.

Lisboa, 14 de Julho de 2013

Carlos Vieira


Um prego...



Um prego,

desde quando 

ali está pendurado

o imenso nada do muro branco?

Nervos de aço

na última fronteira.


Lisboa, 13 de Julho de 2013
Carlos Vieira