segunda-feira, 24 de junho de 2013

Contracorrentes



Truta
lâmina de prata que vence
a corrente
espinho acerado
e canto de pétala
percorre o leito mais profundo
a gruta
onde escondem
a dor do homem

Truta
que por sonhar
a foz do teu peito
nunca desiste
contra à força da água
o apelo do mar
e a suavidade dos limos
e a força bruta

Truta
que a sombra
dos amantes sob as pontes
não convence
porque é da sua natureza
ir até à nascente
a viagem cumprir
a seguir morrer em paz
e assim
poder ficar à escuta
no cume da montanha

Truta
que ali deixa o seu legado
mesmo se coberto pela neve
pelo esquecimento
peixe e pensamento que resiste
que não se deixa levar
hiberna mas persiste
que mesmo sabendo
que vai perder
vai á luta.

Lisboa, 24 de Junho de 2013

Carlos Vieira

sábado, 22 de junho de 2013

A besta


 

 

Pantera

cor de azeviche

dilacera

entre mandíbulas

o crepúsculo

acendem-se

nos seus olhos

inquisidoras

línguas de fogo

dentro de nós

vigiam-se

o apelo da selva

da fera

agora saciado

e o livre arbítrio

do homem

que desespera

encurralado.

 

Lisboa, 22 de Junho de 2013

Carlos Vieira

 


quarta-feira, 19 de junho de 2013

Nas tuas mãos uma paisagem glacial



mãos pálidas da mulher de branco
no Ártico da alma
a insistir na mesma tecla preta

primeiro jogavam as brancas
cintilante era a garra do urso polar
naquela noite de breu

sofrem de “delirium tremens”
as mãos de rainha perdem a cor e a fé
atacada por um bispo negro

olhava-te perplexo enquanto a neve caía
a seus pés as palavras
eram pedras de gelo que tombavam redondas

o seu sorriso
atravessava a grande superfície gelada
flor de viagem e cinzel do tempo

no abandono os cães ganiam
o cavalo branco de freio nos dentes
o Inverno era muito longo e a fome era negra

mãos suadas voltam a atacar o piano à deriva
coração que encalhou
no luar derramado

Lisboa, 19 de Junho de 2013
Carlos Vieira


“Choice is in your hands”
Imagem de autor desconhecido



domingo, 16 de junho de 2013

Pequenos golpes de asa



O pardal
era o coração volante
do arbusto
agitado.

Uma lagartixa
esgueirava-se
pelo caule
como um desejo.

Compareceu
naquela tarde
a hábil borboleta
em ziguezague
pragmática
e ávida
de folhas suaves.

No entanto
este deslumbramento
e rumor
de animais breves
foram interrompidos
por um único estampido
num único segundo.

À morte
do pardal
bastou o gesto
também ele breve
do gatilho
esse pássaro eterno
em gaiola
de ferro.

Talvez lhe reste
a sombra do arbusto
sem coração
ou um sonho separado
do corpo
como a cauda
da lagartixa.

A frágil borboleta
sobrevivente sem memória
bate as asas
resiste ao efeito de sopro
do chumbo
ao cheiro da pólvora
caído sobre o pólen
resiste
na sua vida breve.

Batem as asas
as borboleta
destes tempos
carregando contigo
o peso insuportável
e a subtileza
de mudar o mundo.

Bater de asas
de borboleta
de melhorar
a sua vida curta
de lhe dar
fresca sombra
no desastrado voo
que antecede a sua morte.

Irrompe o arbusto
que não deixou de crescer
desde o princípio da história
com o chumbo
cravado no tronco
encostada a si
permanece
calada
uma espingarda.

Lisboa, 15 de Junho de 2013
Carlos Vieira



                                                           Pintura de autor desconhecido




sexta-feira, 14 de junho de 2013

Reflexão insone



O que me frustra
é esta eterna busca do equilíbrio
de que falava Zaratustra
porque é humano o erro
e a amargura
no homem coabitam em clausura
um animal assustado
e a selva do livre arbítrio
não percebo
o que via
onde queria chegar
o filósofo
depois das trevas da caverna
de que falava
cego de olhar o sol?
porque recusou a frescura
amável da sombra
e o calor e ternura da luz?
porquê a permuta
pela ponte instável e frágil
das palavras
a caminho da poesia
onde apenas existem sonhos
adiados
na clarividência sonâmbula
dos que deambulam
pela noite dos tempos

Lisboa, 13 de Junho de 2013
Carlos Vieira

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Digressão



I
Penumbra
habitação efémera
de asa cintilante
ou navalha oculta.

II
Sobre a fragrância das ervas
de olhos rasos
um gamo assustado
rasga
com suas hastes a bruma.

III
Na nervura
das folhas caindo contra o sol
pode decifra-se
na linha do coração da árvore
onde corre
um animal à solta.

IV
Agora
estou definitivamente
no seio do bosque
não sei se vou regressar
nem sei o caminho
sempre fui tentado
ou me perdi
neste caos
de confundir
a árvore e a floresta
e a clareira é o poema.

Lisboa, 13 de junho de 2013
Carlos Vieira




                                            “Life’s but a wlaking shadow” Francine Bradette

segunda-feira, 10 de junho de 2013

A têmpera dos sonhos dos homens de barro

 

Ainda agora

algures no tempo

pelo meio dia

ouço a sirene da empresa

de cerâmica

era a hora de “despegar”

via-os sair

deuses perplexos

sobreviventes

do fogo e dos fornos

em círculo de cansaço

nessa frágil

circunstância da louça

homens antigos

feitos na amável certeza

de um futuro de barro

a moldar hoje

pelas nossa mãos

 

Lisboa, 10 de Junho de 2013

Carlos Vieira


Foto de autor desconhecido