sexta-feira, 26 de abril de 2013

Herbário I - A efémera beleza e a razão eterna dos cravos



O seu perfume exortava
perdurava intenso nas narinas
afiando o gume agridoce
das palavras que antes eram
apenas e só murmúrios
as plantas apresentavam-se
num silêncio perturbado
animadas da ousadia púrpura
abandonaram os jardins
o sorrisos cínico das janelas
eram eloquência do sangue
que não se quis derramado
sobre a véspera incólume
erguiam seu precário sonho
raíz na alma do cano da G3
o júbilo violento que inebria
frescura carmim que crescia
pelo país erguido em pétalas 
numa suave firmeza vegetal
um prelúdio de chuva fina
prenhe da esperança pueril
de homens duros e antigos
que nunca tinham chorado
agora o cristal das lágrimas
de raiva e amor incontido
lavando perplexos rostos
de penas e tristeza lavrados
calando baionetas no coração
esplendor de subtil clemência
de um gesto que faz renascer
na memória a beleza efémera
e a razão eterna dos cravos.

Lisboa, 26 de Abril de 2013
Carlos Vieira
 

                                   “Mulher em Verde com um Cravo” por Henri Matisse

terça-feira, 23 de abril de 2013

Herbário II


Hoje
é dia 23 de Abril de 2013
fica consignado
que fui pelo campo fora
ali encontrei
uma “serralha” banal
desconheço
o seu nome científico
dela faz parte
uma flor amarela
o leite da seiva
derramado
na paisagem
em apenso
um coelho bravo
que se delicia com ela
poema inquieto
de pelo branco
rimando
no baldio abandonado
das memórias
que nesta data
e nesta função
de manga de alpaca
fica arquivado

neste país

de novo rural.
Lisboa, 23 de Abril de 2013
Carlos Vieira

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Circunstância



O cão vadio
ladra à lua
imperturbável
morde as canelas
ao retardatário
que corre
pela alagada rua
do leite do luar
ali desagua
seu fio de sangue
que extravasa
de ferida solidão
tão pálida e nua
ali vai afogar
cíclicas dores
neste rio de ocasião
onde devagar
o cão vadio
e o retardatário
enfim sós
bebem o luar

Lisboa, 23 de Abril de 2013
Carlos Vieira

                                                  "Man, dog and moon" de Colin Dunbar

quarta-feira, 17 de abril de 2013

O Banho de Psique


No início da sede
ouve o veredito do teu corpo
que escorre
por dentro de si
a memória do chuveiro
a inundar uma manhã
de água cristalina
e de nevoeiro
tu outra vez
um desconhecido país
onde irrompe
a paisagem
à flor da tua pele
estandarte do teu torso nu
sinuoso e inteiro
das tuas mãos brancas
delicadas
a ensaboar a imaginação
que consome
o seu corpo verdadeiro
percorres
os lugares recônditos
onde enlouquece
o coração enclausurado
descreve-te
de olhos fechados
acredita em ti e não te vê
o teu perfume
envolvente
os teus lábios suspensos
flores frementes
a sua pele húmida
destilando
a suave alquimia do despertar
a volúpia
das tempestades
a demência do prazer
o gesto mais limpo
na hora do banho
em que procuravas felina
a palavra mais pura
a lâmina mordendo a carne
depois das águas tranquilas
a vertigem
de um pensamento subterrâneo
o segredo que te possui
no esmalte da louça
onde deixaste a toalha
caída do abismo
dos teus ombros
onde iam pousar libertinas
as aves que o inebriam
sobrevive ao ritmo
da tua desnuda
existência
ficou cego
de tanto olhar o sol.

Lisboa, 17 de Abril de 2013
Carlos Vieira

 

                                       “The Bath of Psyche” pintura de Lord Leighton Frederic

domingo, 14 de abril de 2013

Sonho acordado


 

 

“A lenda diz que quando não consegues dormir de noite é porque estás acordado no sonho de alguém”

                            

Olho para ti

enquanto dormes

aguardo que na doçura

da tua voz

haja um novo

princípio do mundo

uma nova esperança

eis-me aqui

na tua história

de bela adormecida

peixe lúbrico

que nada e respira

nos teus lábios

no leito dos teus sonhos

apenas para te ver dormir

acordo sempre

mais cedo

a seguir

olho por ti

ora descubro a graça subtil

ora sou vencido

pelo deslumbramento

agora

já posso ir à minha vida

ou à mina morte

ali estás

na ilusão de me estares entregue

no entanto

ainda erras pela manhã

pelas veredas

a caminho da poesia exacta

que exulta

pelo fim da noite

não sei por onde andas

contudo

ali estás disponível

como se fosses

uma onda de mar

que veio comigo

para casa

e a qualquer momento

me submerge

ou me leva a navegar

mesmo quando dormes

sabes

que estou à tua espera

como uma árvore

grávida de pássaros

à janela

de uma qualquer primavera

de um sonho acordado.

 

 

Lisboa, 14 de Abril de 2013

Carlos Vieira

 


 

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Escadas

I
Escadas
são as asas do homem para chegar ao céu
ao centro da terra
do sonho
a lado nenhum
às nuvens de um pesadelo
que cresce
dentro de nós
degraus da sede
num poço de amor
e de noite
para onde se desce.

II
Hoje não subi pelo elevador
ataúde da nossa morte vertical
preciso de fazer mais exercício
ataquei as escadas de serviço
pirâmide ou sepulcro de betão
sinto aqui a claustrofobia da vida
que sobrevive  à minha asma
avessa ao esforço anaeróbico
muito mais morto do que vivo
ao chegar a casa ressuscitei
no aroma doce da caldeirada
recuperado da vida afogueada
pronto para o próximo desafio
escolherei a escada de incêndio.

Lisboa, 11 de Abril de 2013
Carlos Vieira

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Um dia de cão

Um dia de cão

Ali está novamente do lado de dentro do aquário, abanando as barbatanas, respirando o mundo lá de fora pelas guelras que é como quem diz sobrevivendo.
No largo, no meio da relva, caía a noite e uma chuva miudinha. Observava os cães, de todas as raças que mijavam alçando a perna e aproveitavam para marcar território. Observava os seus donos que estão ali por causa deles e (ou) por causa dos outros donos de cães com quem tem agora uma cumplicidade, quase canina.
Trocam informação preciosa sobre cães, dedos de conversa sobre muitas outras coisas, pequenas confidências ou arremedos de pequenas e grandes seduções. Dão trela aos cães e aos donos dos cães. Tiram a trela e põem a trela enquanto a chuva cai irritante.
Todos sem exceção tem uma especial atenção para com alguns atos dos cães que se colocavam em situações menos adequadas, se exaltavam, iniciavam pequenas escaramuças, se afastavam das zonas de conforto, então verificava-se que o dono ou a dona tomavam atitudes pedagogicamente assertivas, pois é muito importante que o animal perceba quem é que manda.
Observava aquela simpática manifestação de animais e pessoas, alguns deles e delas, suas conhecidas. Olhavam-se no fundo da sua alma, da sua solidão e sorriam, enquanto os cães corriam uns atrás dos outros e saltavam, cheiravam-se reciprocamente, ladravam e abanavam o rabo, ele no seu voyeurismo decrépito era o único que estava ali a mais, desejando perversamente que todos trocassem de papéis.

Lisboa, 10 de Abril de 2013
Carlos Vieira