segunda-feira, 8 de abril de 2013

Morte súbita ou vida precária


 

 

De repente

Tu eras o poente

Resistindo depois de todas as rosas que murcharam

 

Meus olhos

Pousaram no teu silêncio

Com sofreguidão aprendem a voar até à eternidade

 

Nas suas palavras

Podiam-se ainda ouvir os grilhões, a falta de ar nas câmaras de gás

Sobrevivendo com dificuldade ao tiro que ditou a morte de Martins Luther King

 

Bates no meu peito

Teus braços cruzados

Minhas mãos contorcem-se no vazio e desfolham a penumbra

 

Tu eras um peixe

Rumor fulgente no rio

Agora sou ave nocturna, tu és lago parado à minha volta

 

Partiste ligeiro

Sem olhar para trás, sem fechar a porta

Voltámos a ser apenas vultos cercados de nuvens  

 

Saíste sem dizer nada

Não esperava contudo ficar menos só

Já não te espero, tu espias-me, reencontro-te em qualquer esquina

 

Partiu e deixou-nos no seu peito firme

Óculos redondos e para “ou-ver” ao longe Imagine

Essa última rosa exangue

 

Subitamente

As tuas longas mãos frias

Deixaram acesas apenas as estrelas mais distantes

 

A luz limpa do teu canto

A perfeita serenidade das estátuas

E tu caindo redonda do alto da cerejeira

 

Como pudeste morrer agora

Sem aviso prévio

Desconheces que começou a Primavera

 

Lisboa, 7 de Abril de 2013

Carlos Vieira

 

 

“Woman with her dead child”

Kathe Kollwitz

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Poema escrito contra o vento



Tendo na mão esta força do vento não tenho quase nada
não tendo quase nada tudo quanto tenho é de vento
tenho contudo esta árvore que esbraceja na janela
quando nua o vento a possui varrendo o pensamento
existindo o vento em mim existo na rua dos braços dela
escutando a árvore mesmo se murmura com o vento
se fala contra mim de beijos me cala e assim se revela
um arrepio neste final de Março transido me deixa
e ali agachado de cócoras enquanto voa o tempo
naquela mão fechada num poema de  amor se escoa
fica a fragância da árvore que só do vento se queixa.

Lisboa, 5 de Março de 2013
Carlos Vieira
 

                                                 Imagem de quirkybird.livejourtnal.com
               

Tomas Hobbes - Nasceu em 5 de Abril de 1588

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Aquário



Acabo de chegar
o meu trabalho tem janelas
com grades verdes
e paisagens de árvores seculares
emolduradas em ferro fundido
por um grande tanque
de incansáveis peixes vermelhos
afloram à superfície
para dizer bom dia
com os olhos rasos de água
hoje porém ficaram-se
em profunda meditação
ou ocultos em misteriosas
conspirações
ou pode muito bem
ter sido tão somente
o esquecimento
do chapéu de chuva
e estarem a proteger-se
desta perigosa epidemia
de constipações
eu aqui continuo
na minha indulgência
poética
de peixe fora de água.

Lisboa, 3 de Abril de 2013
Carlos Vieira

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Reincidência


Foste o encontro furtuito

mulher de um momento

antes de um atalho

no canavial

abrigo do vento

pelo caminho das pedras

por entre as tréguas do musgo

a seguir às nádegas

vislumbro

na blusa molhada

um rouxinol a respirar

e se entreaberta

o intenso perfume

das primeiras chuva

a arfar

sobre o teu corpo nu

resvés da demência

e restolho da perdiz

num verão inesquecível

sobre o trigo

o meu dedo indicador

ainda vai pelo luar da tua pele

perpendicular

ao voo de melro azeviche

riscando o pomar

lembras-te

do espinho encravado

a dar início à dor

da ausência

de um final de tarde

e tu ávida a escorregar

para as margens violentas

do meu peito

a luz truculenta

dos teus olhos e das tuas unhas

a seiva do fruto que sorviam

teus lábios vermelhos

onde surpreendia

acesas manhãs

e erravam animais suaves

que saíam do nevoeiro

do tempo

a onde havia de chegar

a alegria transbordante das ribeiras

palavras vagas

que beijam a quilha triste

dos barcos de última viagem

encalhados na recôndita memória

murmuram-te

palavras que depois

se soerguem como feras

emboscadas

no rumo excêntrico das ancas

sonhando o túmido apogeu

dos teus seios

estrelas arquejantes

que na sua clarividência subtil

adornam na concha

das minhas mãos

em puro silêncio

apenas quebrado

pela cadência de bátegas chuva

sem sombra de pecado

que volta a cair

fria

e despertam de novo em mim

ou apenas me revela

a poesia

um recorrente desejo

de rever-te

neste meu ciclo frenético

de estações

de regresso ao local do crime

ao rumor

de um amor reincidente

à mesma mulher breve

de neve

cristal de reencontro

furtuita fonte


da eternidade.


Lisboa, 1 de Abril de 2013

Carlos Vieira




                                                     Les amoureux de Vence (Marc Chagall)

quarta-feira, 27 de março de 2013

A furgoneta do meu avô I




A memória
de uma furgoneta
verde petróleo
que subia em primeira
aquela encosta
de barro vermelho
aos ziguezagues
na estrada de alcatrão
o súbito despiste
a colisão contra a oliveira
na berma
eterna e impávida
que não ocorreu por um triz
seguiu-se
uma revoada de pássaros
ferindo a tarde de silêncio
nódoa negra no céu azul
o condutor e o pendura
saíram ilesos
de mãos na cabeça
a furgoneta verde petróleo
esfumou-se
do radiador da infância
a vida a ferver
em circuito fechado
após o vulgar incidente
na memória
a todos salvo agora
por milagre.

Lisboa, 27 de Março de 2013
Carlos Vieira

domingo, 24 de março de 2013

Era uma vez o tempo de vida



Fica por ali imóvel

admirando as congeminações do tempo que corre

dá-lhe corda.

O tempo é como a corrente do rio

é esse lugar comum de ficar em cima da ponte em transe

a vê-lo passar ou se morde o isco.

Nesse entretanto

cresce a sua dor e avista o avião comercial que se aproxima

será dentro de pouco tempo o barulho dos seus motores ensurdecedor.

Aguarda agora paciente a sua vez

naqueles propósitos e no seu comportamento exemplar

nem parece um rapaz deste tempo.

Espreita para a esquerda da estação

a melancolia dos carris estende-se sem se encontrar até ao infinito

o tempo do comboio não é o seu.

Vai devagar

aparentemente, terá muito tempo

ninguém lhe poderá dizer qual o tempo que lhe pertence. 

Pode ter vindo da guerra

pela forma furtiva de se deslocar

no compasso de espera deflagra o solitário ricochete de um olhar.

Não se precipita

deixa que as coisas aconteçam pois o que tem demais é tempo

e o desespero, no dilema de o perder ou de saber esperar.

Até ao crepúsculo na sua timidez vive escondido

agora vai ser a hora dos lobos

e a sua que envergonhadamente lhe veste a pele.

Haveria de chegar à sua altura

do sol brilhar e da colheita dos frutos

não contou porém de que apenas a morte, o tempo nos dá como certa.

Sai de casa e corre mas perde o autocarro

na sua cabeça mil e uma tarefas e assuntos se acotovelam

perde contra o cronómetro, a multidão e os lugares, ele é o seu contratempo.

Esperava sentado no banco do jardim

apagaram-se os risos das crianças, a solidão dos velhos decorados de flores

ficou ali à sua espera com a noite e a lua, ela odiava que se atrasasse aos encontros.

Foi apenas um instante de lucidez, sem pestanejar

e saltou para o precipício e acendeu um sorriso

saltou para dentro do tempo que ali ninguém o iria procurar para o prender.

O passageiro do tempo

não tem nem rugas, cabelos brancos, nem silêncios amadurecidos

em êxtase olha a paisagem, quem está de viagem na vida nunca morre, será que existe?

Pesa na sua memória  a pedra de calcário

relógio de sol e altar no horizonte que lhe oferecia o amanhecer

depois da clepsidra esvaziar as longas noites da infância.

Olhava-te como se nada mais existisse

as palavras, o movimento dos seus gestos definiam as estações, a noite e o dia

e se abraçasse o seu corpo o tempo possuía.

Lisboa, 24 de Março de 2013

Carlos Vieira


                                             Imagem de autor desconhecido