sexta-feira, 5 de abril de 2013
quarta-feira, 3 de abril de 2013
Aquário
Acabo de chegar
o meu trabalho tem janelas
com grades verdes
e paisagens de árvores seculares
emolduradas em ferro fundido
por um grande tanque
de incansáveis peixes vermelhos
afloram à superfície
para dizer bom dia
com os olhos rasos de água
hoje porém ficaram-se
em profunda meditação
ou ocultos em misteriosas
conspirações
ou pode muito bem
ter sido tão somente
o esquecimento
do chapéu de chuva
e estarem a proteger-se
desta perigosa epidemia
de constipações
eu aqui continuo
na minha indulgência
poética
de peixe fora de água.
Lisboa, 3 de Abril de 2013
Carlos Vieira
segunda-feira, 1 de abril de 2013
Reincidência
Foste o encontro furtuito
mulher de um momento
antes de um atalho
no canavial
abrigo do vento
pelo caminho das pedras
por entre as tréguas do musgo
a seguir às nádegas
vislumbro
na blusa molhada
um rouxinol a respirar
e se entreaberta
o intenso perfume
das primeiras chuva
a arfar
sobre o teu corpo nu
resvés da demência
e restolho da perdiz
num verão inesquecível
sobre o trigo
o meu dedo indicador
ainda vai pelo luar da tua pele
perpendicular
ao voo de melro azeviche
riscando o pomar
lembras-te
do espinho encravado
a dar início à dor
da ausência
de um final de tarde
e tu ávida a escorregar
para as margens violentas
do meu peito
a luz truculenta
dos teus olhos e das tuas unhas
a seiva do fruto que sorviam
teus lábios vermelhos
onde surpreendia
acesas manhãs
e erravam animais suaves
que saíam do nevoeiro
do tempo
a onde havia de chegar
a alegria transbordante das ribeiras
palavras vagas
que beijam a quilha triste
dos barcos de última viagem
encalhados na recôndita memória
murmuram-te
palavras que depois
se soerguem como feras
emboscadas
no rumo excêntrico das ancas
sonhando o túmido apogeu
dos teus seios
estrelas arquejantes
que na sua clarividência subtil
adornam na concha
das minhas mãos
em puro silêncio
apenas quebrado
pela cadência de bátegas chuva
sem sombra de pecado
que volta a cair
fria
e despertam de novo em mim
ou apenas me revela
a poesia
um recorrente desejo
de rever-te
neste meu ciclo frenético
de estações
de regresso ao local do crime
ao rumor
de um amor reincidente
à mesma mulher breve
de neve
cristal de reencontro
furtuita fonte
da eternidade.
da eternidade.
Lisboa, 1 de Abril de 2013
Carlos Vieira
Les amoureux de Vence (Marc Chagall)
quarta-feira, 27 de março de 2013
A furgoneta do meu avô I
A memória
de uma furgoneta
verde petróleo
que subia em primeira
aquela encosta
de barro vermelho
aos ziguezagues
na estrada de alcatrão
o súbito despiste
a colisão contra a oliveira
na berma
eterna e impávida
que não ocorreu por um triz
seguiu-se
uma revoada de pássaros
ferindo a tarde de silêncio
nódoa negra no céu azul
o condutor e o pendura
saíram ilesos
de mãos na cabeça
a furgoneta verde petróleo
esfumou-se
do radiador da infância
a vida a ferver
em circuito fechado
após o vulgar incidente
na memória
a todos salvo agora
por milagre.
Lisboa, 27 de Março de 2013
Carlos Vieira
domingo, 24 de março de 2013
Era uma vez o tempo de vida
Fica por ali imóvel
admirando as congeminações do tempo que corre
dá-lhe corda.
O tempo é como a corrente do rio
é esse lugar comum de ficar em cima da ponte em transe
a vê-lo passar ou se morde o isco.
Nesse entretanto
cresce a sua dor e avista o avião comercial que se aproxima
será dentro de pouco tempo o barulho dos seus motores ensurdecedor.
Aguarda agora paciente a sua vez
naqueles propósitos e no seu comportamento exemplar
nem parece um rapaz deste tempo.
Espreita para a esquerda da estação
a melancolia dos carris estende-se sem se encontrar até ao infinito
o tempo do comboio não é o seu.
Vai devagar
aparentemente, terá muito tempo
ninguém lhe poderá dizer qual o tempo que lhe pertence.
Pode ter vindo da guerra
pela forma furtiva de se deslocar
no compasso de espera deflagra o solitário ricochete de um olhar.
Não se precipita
deixa que as coisas aconteçam pois o que tem demais é tempo
e o desespero, no dilema de o perder ou de saber esperar.
Até ao crepúsculo na sua timidez vive escondido
agora vai ser a hora dos lobos
e a sua que envergonhadamente lhe veste a pele.
Haveria de chegar à sua altura
do sol brilhar e da colheita dos frutos
não contou porém de que apenas a morte, o tempo nos dá como certa.
Sai de casa e corre mas perde o autocarro
na sua cabeça mil e uma tarefas e assuntos se acotovelam
perde contra o cronómetro, a multidão e os lugares, ele é o seu contratempo.
Esperava sentado no banco do jardim
apagaram-se os risos das crianças, a solidão dos velhos decorados de flores
ficou ali à sua espera com a noite e a lua, ela odiava que se atrasasse aos encontros.
Foi apenas um instante de lucidez, sem pestanejar
e saltou para o precipício e acendeu um sorriso
saltou para dentro do tempo que ali ninguém o iria procurar para o prender.
O passageiro do tempo
não tem nem rugas, cabelos brancos, nem silêncios amadurecidos
em êxtase olha a paisagem, quem está de viagem na vida nunca morre, será que existe?
Pesa na sua memória a pedra de calcário
relógio de sol e altar no horizonte que lhe oferecia o amanhecer
depois da clepsidra esvaziar as longas noites da infância.
Olhava-te como se nada mais existisse
as palavras, o movimento dos seus gestos definiam as estações, a noite e o dia
e se abraçasse o seu corpo o tempo possuía.
Lisboa, 24 de Março de 2013
Carlos Vieira
Imagem de autor desconhecido
quinta-feira, 21 de março de 2013
Indícios e inquietações e esboços
Reencontro-te
porque vais tocando o solo como se fosses
um anjo
nos vestígios quase impercetíveis de
rastos e de antigos caminhos
que as areias do deserto e do
esquecimento quase apagaram
descortino no teu vestido caído
o peso subtil da porcelana do teu
corpo
teus pés de fogo fazem crepitar as
folhas caídas
e entras sem pedir licença por mim a
dentro
no meu peito despertas o labor paciente
de um rumor de bichos
que ruminam ervas à volta de um
inefável sentimento
e vejo-te no espelho com olhos de
admirar as ruínas da terra
cegos de espanto e do húmus para o
início das flores e dos frutos
os pássaros tecem segredos e ninhos num afeto de lama
e argila
podia ter um cão que pudesse farejar
tão perto e tão longe a lâmina fria da palavra murmurada
depois se perdesse também por ti no
arvoredo
no seu instinto todos somos animais
e todos selvagens
presos ao silêncio dos pensamentos
mais puros
onde um a um vamos beber à nascente
cansados de tanto desbravar caminho
agora podia adivinhar o teu perfume
esplêndido
um mistério prestes a desfazer-se
de mar fustigando a rocha
de inseto que acabou de pousar no
princípio do mundo
e de palavras que te queria dizer presas
na garganta
o teu nome na minha voz fulminante
que atravessa a árvore
como se fosse um raio de sol vencendo
a penumbra
para beijar a ténue corola da tua
pele expectante
e para que possas voltar
e vislumbrar a calma enseada do meu
ombro
onde te abrigavas.
Lisboa, 21 de Março de 2013
Carlos Vieira
segunda-feira, 18 de março de 2013
Intramuros
no muro de arestas vivas
um tufo de flor é a sombra perturbada
de uma breve coroa de espinhos que amadurece
no muro a sub-reptícia lagartixa
devora a pedra e uma ilha de musgo verde
a camisa branca desfraldada de Goya porém permanece
no muro a súplica de uma janela
o desespero sitiado dos miseráveis e foragidos
derradeira cintilação de asas ou da lucidez de um lenço que escurece
no muro branco do nosso calabouço
aceso dos riscos para os dias e das grades para as noites
é a fronteira da liberdade e o arame farpado dentro dos
homens que cresce
Lisboa, 18 de Março de 2013
Carlos Vieira
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