segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Habeas Corpus V

Era uma vez
um maldito peixe
devorando as margens
rindo-se da casa em ruínas
onde afogueada
sobrevives.

Era uma vez
o triste enredo da carne
na tímida cortina
onde te escondes
do desejo
que te consome.

Era uma vez
em que subias
vagamente  de sandálias
e tropeçaste
fazendo  entornar
a madrugada.

Era uma vez
tu e a tua fragância
fluorescente
surpreendendo a alameda
cercada
por um triângulo amoroso.

Era uma vez
em que ias regressar  saciada
de quase nada
estremecendo na penumbra
de quase tudo
apagada
num curto circuito .

Era uma vez
uma sardinha
de melancolia prateada
suavemente
pousada sobre a bondade
de um pão de milho
e tu esfomeada.

Era uma vez
em que te bastava
o benefício
de viveres à margem
para em troca
entregares todo o teu amor
desesperado
às piranhas mundo
a benefício de inventário.

Lisboa, 21 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira

                                                    “ Alone” por  Lizzie Borden

domingo, 20 de janeiro de 2013

Habeas Corpus IV



Tendo sido vetada pela autoridade competente

a entrada no país

corre agora dentro de si toda a sofreguidão do rio

em busca da raiz

das palavras

barcos que descem intrépidos até à foz

desfazendo nós

das palavras

temerosas da voracidade dos peixes e quedas de água

os remos afagam a mágoa

das palavras

que se afogam em formulários

preenchendo a sua vaga naturalidade

palavras ansiando

represas e a emoção da língua

vencem a bruma

as suas mãos de uma brancura fulgurante

sem palavras

reconheces o diálogo das pedras entre a espuma

que pode ser o teu país

em silêncio

porque as palavras podem ser usadas contra si

o fulgor de arestas do teu olhar

a soletrar

os contornos da ausência

da tua vida

à deriva

do teu corpo a divagar

sem pestanejar

sulcando-o um pequeno fio de sangue

visando

o passaporte para uma outra vida

outro país

definitivamente apátrida.


Lisboa, 20 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

                                                         Pintura de Alfredo Aquino

sábado, 19 de janeiro de 2013

Habeas Corpus III


 

 

Interdito

era o gesto destemido

que se cruzava em pleno voo

no interlúdio de um olhar

desencontrado

o pássaro assustado

e o rumor da seiva

de um  jardim proibido

na persistência da corola

que se oferece silente

ao ligeiro insecto

que laborioso

decifra a senha de acesso

ao coração do tempo

um búzio de fogo

na tua mão

 intrépido.

 

Lisboa, 19 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 
                                                             Imagem encontrada em Zazzle

Habeas Corpus II


 

Delimitada

a luz sobre um pensamento

sobre as ideias fixas

depois que a ave do desejo

traiu a fuga mais ousada

refugiando-se num corpo ancorado

adivinha-se na corrente de ar

da gruta ancestral

uma luz ao fundo do túnel

germinam as asas

no húmus da sombra

que te libertam da penitência

e pacientemente

teces a alegria silenciosa

de organizar o caos

 

Lisboa, 19 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira

 
 

 
"Organizing Chaos" no site Nikinotes
 

 

 
 

 

Habeas corpus

 
 
 
 
 
I
Proscrito
nunca na sua vida
lhe foi permitido entrar
no reino vegetal da palavra escrita
apenas de uma flor imaginada
se solta o perfume
de um rosto antigo
e uma ilha desconhecida
no rumo de um navio
enquanto na sua boca
uma língua morta apodrecia
enquanto os pássaros
que fizeram ninho no seu peito
lhe percorreram as artérias
e atravessaram a paisagem
de grades de ferro fundido
que ganharam raízes
dentro de si.
 
Lisboa, 19 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira
 
 
“Pomba da Paz” de Pablo Picasso

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

A espargata...

A espargata
nunca a consegui fazer
não tenho inveja
de quem tal consegue
no entanto
esta desprezível limitação
tem-me perseguido
nos últimos tempos.
Sempre fui duro de rins
pouco dotado de equilíbrio
e com medíocre sucesso
nos exercícios de solo
nessa coisa da flexibilidade
ou nos trampolins
avesso à  democracia musculada
ainda sinto a censura do olhar
que me fulmina
a quando do libertador
exercício de espreguiçar-me.

Lisboa, 15 de Janeiro de 2013
Carlos Vieira


sábado, 12 de janeiro de 2013

Agora, o apocalipse



A guerrilha das palavras

despedaçadas

articulando a esperança

o dedo que percorre

nervosamente

o espaço da necrologia

ao encontro

de todas as mortes.

 

Depois a carta oficial

a certeza da mina

da surpresa do voo

a propaganda

dos danos colaterais

o mito

da inevitabilidade

e o elogio do destemor

na trincheira

da tinta permanente.

 

Alguns relatos

referem um imbróglio

de corpos e de membros

por identificar

onde alguns vislumbram

o espírito de missão

outros apenas a carne

que foi para canhão

exposta ao sol

os seus ocupantes

vítimas da emboscada

dilacerados e irreconhecíveis

só os familiares

irão com certeza ver

as medalhas nos seus belos

estojos

há muito compradas

e os discursos

de um justo reconhecimento

e a bandeira dobrada e engomada.

 

Uma aventura de heróis mortos

numa confluência de águas turvas

e páginas revoltas de vergonha

na margem do rio

e da razão dos répteis

e da algazarra

da destruição massiva

no céu

as colunas de fumo

e balas tracejantes

os very-lights

“sejam bem vidos à festa!”

 

O soldado reza

por alguém que se esvai

e depois vai-se

a vida continua

a limpeza e o saque

feitos à pressa

a evacuação

no helicóptero que demora

tornando

irremediavelmente

tardia a transfusão.

 

Uma ração de combate

no “cu-me”

do medo

do desespero

naquela mão decepada

abandonada

no campo da batalha

absurda

de baionetas caladas

enquanto semi-deuses descem

sobre a terra queimada

de pára-quedas

indiferentes

ao fogo

das antiaéreas.

 

O pelotão

camuflado na linha

de água do tempo

sem saber da morte

à sua espera

na próxima curva de nível

o estampido

um clarão e um cheiro

a pólvora queimada

e o silêncio derramado

um breve sorriso inimigo

no canto da boca

tudo diz

e não digo mais nada.

 

É imperioso

sair dali depressa

e mete o cantil aos lábios

desde há muito que a sede

é a sua amada

é ela que o desvia

deste trilho que percute

por entre a névoa

a flor acesa e acidental

de uma rajada

de “metralha-amadora”.

 

Se bem que aqui

nada acontece por acaso

até para cagar

está prevista uma estratégia

estão previstos

os números de mortos

de urnas

e de viúvas

de velas e orações

de filhos de valentes

e de cobardes

de legiões de estropiados

apenas existem porém

dúvidas fundadas

sobre o número de noites

de insónias.

 

A voz de comando

ajuda-nos a sobreviver

no meio da selva

e do betão

o tão traiçoeiro

franco atirador

tão certeiro

e as granadas como aves

a voarem sobre os muros

a entrarem-nos

pela casa dentro

o caos do salve-se quem puder

tudo isto

acredita-se

pode causar

algum desconforto.

 

Os tanques

esmagam a primavera

fechada a escotilha

naquela torre

onde sonhamos

as dunas da praia

cegos pela areia de deserto

erguem o membro fálico

“fodam-nos a todos!”

ordena o comandante

que mais pode ele dizer

que mais podemos fazer

são eles ou nós

“estatística-mente”

se bem que pudessem

ser eles e nós

ninguém é de ninguém

e eu não sou de intrigas

tudo em defesa

da democracia

ou da nação

ou dos mais nobres princípios.

 

Lisboa, 11 de Janeiro de 2013

Carlos Vieira