sábado, 24 de novembro de 2012

Paisagem interior



Entre a mulher e a realidade
apenas a espessura do vidro
onde agora escorre toldada
sua imagem na miríade húmida
da água da chuva e do vento
por osmose as suas lágrimas
descem saciando a sua sede
de circunscrita flor interior
do lado de fora na floreira
murcham folhas no Outono
corre ofegante o moinho
espelhando-te revoltada flor
teu solitário coração que bate
solidário lá fora furiosamente.

Lisboa, 24 de Novembro de 2012
Carlos Vieira

O que me emociona...


o que me emociona ao escrever é lançar a rede

pela manhã pescar as já tão parcas palavras

deixo que me seduzam, relendo escuto, sopeso

infinito desejo do cristal das que me calam

enquanto no meu peito presas outras clamam

são sílabas de luz que anseiam do rio o leito

outras peixes que exaltam no açude do poema

o fulgor de um sonho de foz em escamas e sal

 

Lisboa, 21 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

                 China lonely planet escape, cormorant fisherman Huang on the Yuolong River

                 Autor desconhecido

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Percepção


Percepção

 

Não reconheces mais este lugar

se tu própria aqui te desconheces

como te poderias encontrar

 

aliás tem sido essa a tua sina

pretexto para te abandonares

na busca da sombra que amadureces

 

vendo-te chegar mudas de página

mudas de cor e mergulhas na neblina

 

o que te entristece nesta selva urbana

não é ser fria é ser com os frágeis desumana

 

é a escassez  e a brevidade dos momentos

dos sorriso que se rasgam no teu rosto

é uma ausência suave que enlouquece

 

se somos a cicatriz em que ficamos

ou o tumulto de onde partimos a contragosto

isso são meros sinais dos tempos

 

Lisboa, 21 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                         Imagem retirada da Internet de autor desconhecido

domingo, 18 de novembro de 2012

Álibi


 

 

Naquele preciso momento

na perplexidade

na indiferença

do golpe

não era ele que estava ali

quando a lâmina encetou

o seu vibrante caminho

sem retorno

e aflorou o coração

após penetrar pela floresta

do interstício vertebral

era impossível ser ele

quando na boca soçobrou

a derradeira palavra

exclamando a solidão

e o olhar se despediu da Terra

fitando-o atónito

perante a perfídia

não poderia ser ele

que estava para lá do tempo

antes das casas e do código postal

dos números de polícia

dos cidadãos e dos deuses

desses de todos os dias

que cantam e amam

uns por cima dos outros

ou lado a lado

ele era agora

aquela arma branca

discurso e flor ensanguentada

sobre a mesa

e inútil de novo

ele era agora

as amáveis ruínas

que sobram na luz da tarde

esse puro punhal

que algures

nos torna no mínimo cúmplices

nessa morte fulminante e sem motivo

de abreviar o mundo

aos frágeis heróis

pelos cobardes do dia a dia

 

Lisboa, 18 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

 

sábado, 17 de novembro de 2012

1. Interlúdios



 

I

Entre a folhagem

do teu olhar

as suas mãos

eram pássaros

que ali iam

pernoitar

 

II

Os teus caracóis

de ouro

a desaguar

nos ombros

a luz incrédula

do farol

e o abraço azul

do mar

no alabastro

do teu pescoço.

 

III

O sabor

a sal e a suor

nos teus seios

a arfar

na penumbra

o cristal puro

do teu rosto

tranquilo

e a breve

tristeza

das palavras

por dizer.

 

Lisboa, 17 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

                                                   
                                                  Pintura de Marc Chagall

 

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Versos a um amor desconhecido


 

 

Percorreu a espiral

do seu torso

e perdeu-se

para sempre

nunca se saberá

quem foi.

 

Contorna o veludo

da sua pele

entre miragens

e alucinações

e deixou de saber

quem é.

 

À flor dos lábios

inventou um alfabeto

só para eles

nesse labirinto

de emoções

desconhecia-se

o porquê.

 

Entre dentes

o rumor

acutilante das palavras

que murmurou,

até quando?

 

Ficou cego

no arco tenso

das suas pernas

e não sabia morse

ficou para sempre

sequestrado,

entregue a si próprio.

 

A sua alegria

era a dele

o sol de inverno

era dele

as suas lágrimas

eram suas

correram desejadas

não se sabe,

por onde

nem para onde.

 

O sexo sobrevoava

o tempo lento do corpo

era um relógio de água

que dava corda ao pensamento

à raiz do fogo

às crinas do vento,

ninguém sabia

o que faziam ali?

 

Pediam as suas ancas

o rumo estreito

das suas mãos

acalmando as correntes

os espasmos da pélvis

fechavam-se seus olhos

tudo tinha acabado

havia tempo

nenhum dos dois sabia

os termos do armistício.

 

Lisboa, 16 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

Foto: 14 de Agosto de 1945: Um marinheiro americano beija uma enfermeira para celebrar o fim da II Guerra Mundial. A enfermeira, Edith Shain, morreu em 23 de Junho de 2010, com 91 anos.

 

 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Reconstituição



Um corpo nu e único admirável
amputado de todos os sonhos
e pétalas
e do desassossego das gaivotas.

Nele ainda resvala
o vórtice do canto
o seu perfume reconhecido
a incendiar
ainda a epiderme.

Respira-se a alusão
a um mar de tranquilidade
interrompida
por conchas de espanto
um corpo vencido pelo cansaço
por um sono
de areia e sal.
  
Na praia impressos
os pés descalços
da mulher recém atropelada
pelo real 
pelas ondas que se enrolaram nas pernas
no sexo
de um refluxo apenas vegetal.

Mulher abandonada que o mar beija
em decúbito dorsal
e na rebentação
liberta
e enleia de algas
abusa da fragilidade
e a devolve à terra
.
Sempre este mesmo mar
que tão violenta
e profundamente
nos quer
e nos mata.



Lisboa, 15 de Novembro de 2012
Carlos Vieira


                                          Imagem retirada da Internet de autor desconhecido