sábado, 10 de novembro de 2012

Líquenes, exercícios de vida mínima



 
 

Líquen

sussurro subtil

caligrafia de seiva

sobre a pedra inacessível

flor de um fogo breve

aroma de ave ávida de sonhos

 

líquen

voz que se ergue de erva-doce

sob as asas da neve

que irrompe na noite

das entranhas da terra

pelas frestas do tempo

cujo focinho empurra o sol tímido

pela madrugada

 

líquen

planta onde se acende

o reflexo rumor

de precários insectos

que viajaram

nos caprichos de vento

e que devoram agora

a última esperança

de uma vida vegetal

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 
                                                 “Liquen” Myriam Le Borgne

 

 

 

 

 

Aula de ginástica da Matilde


 

 

Eis -me aqui

a multiplicar os pinos cambalhota

e as rodas

na serenidade

dos seus grandes olhos verdes

a sorrir nas pontes

vendo-a sair ilesa e de pés descalços

dos flic’s para trás e para frente

regressando a si

ao seu rabo de cavalo

à sua elegante desenvoltura

nesta girândola de acrobacias

puro poema do meu sangue

em movimento

e naquele momento

esqueci a ginástica do fim do mês

sem tapete

sem futuro

e tantos outros filhos

de equilíbrio instável.

 

Lisboa, 10 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

 

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Ontem...


Ontem

tive à espera do metro

de chapéu-de-chuva aberto

como quem segura

um pensamento

uma nuvem

quando entrei na carruagem

não percebi

aquela chuva de sorrisos

 

Lisboa, 9 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

Desnível

Desnível

Por cima da ponte da ribeira de Loures, passei agora por um cão e um sem-abrigo, esquálidos os dois.
O humano de cabelo escorrido, de rosto mirrado e uma camisa de burel de ex-condenado, lançava-lhe insultos e um olhar furibundo.
O animal era dourado e trazia um baraço ao pescoço e seguia o homem a uma distância de segurança, seguia-o em trote curto.
O cachorro reconhecendo-lhe a comunhão da desdita, um destino comum, lançava-lhe um olhar que era uma outra ponte, por cima da ribeira de Loures

Lisboa, 9 de Novembro de 2012
Carlos Vieira

Desço pela névoa...

Desço pela névoa
o passado cabisbaixo
a vereda e o lameiro
pelo olhar lúbrico
dos bois
vou  ao bebedouro
e sorvo com eles
a água e a lua
lavo as feridas
alcanço a madrugada
e pego pelo cornos
a puta da vida

Lisboa, 9 de Novembro de 2012
Carlos Vieira

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Foi pelo sopé...


Foi pelo sopé

firme da estrofe

na tarde onde se diluía o sol rasteiro

que articulava

rimas e ervas daninhas

levou o gado das palavras tresmalhadas

para o redil

e os lobos rondaram

toda a noite à volta

do poema

que lhe enganava a fome

 

 

Lisboa, 8 de Novembro de 2012

Carlos Vieira

Lagunas

as lagunas
pensamentos
escritos por extenso
afogados no tédio do Verão
na temerária utopia dos peixes
fora de água
são setas de sílex que sobem à tona
reféns de uma verdade profunda
e de razões superficiais

Lisboa, 7 de Novembro de 2012
Carlos Vieira