sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Fragmentos de alma rústica



I
Sou um vago ouriço
que erra pelas  hortas
verdejantes
que ora se enrola
ora vacila
em sonhos de nevoeiro
e clorofila

II
Sou um pássaro
ou uma ave migrante
que no seu canto
os seus procura
ou protege do perigo
e a baixa altitude
ora leva consigo
o peso da angústia
ora a alegria do trigo
  
III

Eu volto ao campo
levo comigo as ruas
toda minha vida
revolta
do gozo imediato
e inconsequente
e no forno cozo
um único pensamento
uma fatia de pão quente

IV
Eu sou todas as serras
ainda me cercam
as oliveiras
nos dias cinzentos
e dias de prata
cheguei atrasado
ao horizonte
nem os moinhos
já fazem farinha
nem os sinos tocam

 V
Sou eu que estou
lá em baixo
onde o rio anda já não corre
já sem peixe
nem rouxinóis
ou cabeleiras de vime
e nas margens caracóis
não extravasa
neste rio  ninguém se afoga
ninguém sai de casa


Lisboa, 26 de Outubro de 2012
Carlos Vieira



                                                            “My Soul” Karen Meyere



quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Musgo...


 

Musgo

Ode alucinante

Rumor de corrente nocturna

Filigrana de folhas caducas de carvalho

Entrelaçadas de céu para um pássaro afoito

E que no vagar dos insectos insones acontece

Na subtileza urgente dos meus dedos humedece

Labirinto de grutas e selva de fragâncias onde pernoito.

 

Lisboa, 24 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Faúlhas



Ígneo, enquanto andava durante o Verão passado, por terras calcinadas pela devastação dos incêndios, deparei-me com este controverso adjetivo que tanto alude à natureza como à cor do fogo. Sendo certo que, uma coisa pode não implicar a outra, contrariamente à expressão, “não há fumo sem fogo”, fórmula popular que traduz uma estranha ressonância e coincidência científica.

É ancestral a busca e preocupação do ser humano por fontes de ignição, pelo despoletar o fogo, pois conhecer o que está na origem do mesmo, foi sempre meio caminho, para percebermos os primeiros passos desse homem que nasceu imaculado ou do louco incendiário, do homem que brinca com o fogo e daquele outro que domina o mundo pelo seu poder de fogo ou, tão-somente, do humilde residente das fogueiras e dos fornos, saltimbancos manipuladores das fontes de calor, que moldam os resistentes materiais e os tornam cristais, habitáveis, de uma beleza polida e quase eterna.

A “atração do fogo”, não pode ser considerada, nem sequer uma derivação do “fogo que arde sem se ver”, pois neste caso o ígneo poder faz de nós combustível, enquanto na primeira, o homem provoca a combustão, ajuda a que a mesma se propague ou no mínimo, protagoniza um qualquer Nero, em êxtase perante uma insignificante Roma, em chamas.

Não é só no meu imaginário que as labaredas lavram histórias de tios-avós á lareira, desfiando um rosário de heróis decantados em cofres e alcovas medievas, nesse crepitar de escaramuças e de paixões dissidentes.

Contudo, foi nesse fogo lento e na sedimentação dessa lava de estórias que se aperfeiçoou a liga, que nos tornou mais firmes, aguentando as messiânicas correntes e deslizes, temperando no coração um rumo demiurgo e mantendo-lhe a febre e o ponto de fusão, que nos reinventa e eleva a cada momento, ao deflagrar do renovado conhecimento, exortando corajosos gestos de misericórdia e humanidade.

Foram definhando as fogueiras que sobrevoamos na infância, os dragões que nos davam a prevalência das florestas e o fogo-de-artifício que dava início ao sortilégio estival, de dias dionisíacos de festa.

Travestidos de novos modelos e roupagens, passaram-se a fazer às escondidas os autos de fé iluminando tenebrosas masmorras e estreitos labirintos de espírito, fustigando quem enfrentando as trevas, se atrevia a alumiar a penumbra com o candeeiro queimando o óleo de esperançados discursos e de generosas palavras sussurradas.

O inferno ardia nas fronteiras da nossa prodigiosa imaginação, os mafarricos delatores em sulfúreos lugares evoluíam, permaneceram refractários às línguas de fogo que os lambiam e flamejavam archotes, tornando mais real a dimensão do homem e do seu inferno e mais relevante o doce vegetar da sua sombra bruxuleante.

No entanto, todas aquelas reflexões, se foram apagando e naquele campo de desolação, onde de pé, a negritude dos troncos nus acusadores protestavam, a cinza que como um manto cobria terra, não havia nada mais para arder, apenas o acaso do rescaldo de um tempo de solidão, o amor tinha-se tornado num fantasmagórico fogo-fátuo.

 

Lisboa, 22 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

domingo, 21 de outubro de 2012

Amava-te...


amava-te
no céu a rubrica
do seu corpo de ave
de partida
apagava -se
num chapéu de chuva

sem acreditar
a sua mão reconstruia
o seu rosto
a partir do espelho
da sua ausência
e do caos dos seus cabelos

sem pestanejar
definiu nos seus lábios
o seu silêncio
suspendeu a respiração
ao contornar
a curva do pescoço

a doce memória
do seu perfume
contaminou seus dedos
as lágrimas e a chuva que caiu
formaram o rio
que os afogou no desenho

Lisboa, 21 de Outubro de 2012
Carlos Vieira


                                                        “Rainroom” autor desconhecido


5 - Pomba branca


5 - Pomba branca

      vai e leva a carta branca

      as novas da declarada guerra

     

 

 Lisboa, 21 de Outubro de 2012

 Carlos Vieira

4 - Pomba branca


4 - Pomba branca

     acena um lenço de espuma

     no arame farpado das trincheiras

 
 Lisboa, 21 de Outubro de 2012

 Carlos Vieira

3 - Pomba branca


 

    pomba branca

    descansa no telhado vermelho

    na guerra pessoas e pombas vivem sem abrigo

 

 Lisboa, 21 de Outubro de 2012

 Carlos Vieira