quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Teu corpo meu barco imaterial



Quem sou eu?
Em que momento da tua luminosidade
me perdi?
Qual o teu lado mais negro?
Este frio que me transe
serão apenas teus olhos
que abandonam
uma parte de mim?

A tristeza que irradias
será a quietude onde te aguardo?
Tu me desconheces
e, no entanto, a tua dor  
se adequa à minha ausência.

Atingimos os mais altos cumes
e temperaturas
que proporcionam a duração das distâncias
que acolhem a memória das partículas
do teu corpo
que se pode decompor em música.

E, se a velocidade da tua sombra se apodera
dos meus dedos desertos
como posso sobreviver
neste dilúvio da chuva e de cinza
que cai
ou a este momento de trevas?

Sobre a carne cálida e sequiosa
nos teus lábios entreabertos
deflagram improváveis realejos
murmurando inéditas partituras,
reencontramo-nos a caminho
do mar amniótico interior e ancestral
no deslumbramento do teu corpo
aceso na curva das ondas
onde podemos de novo escutar
um sussurro, uma azáfama de beijos
no regresso ao eco líquido e seminal.

Karlsruhe, 9 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

                                León Ferrari  “Declaraciones de Scilingo, Nunca Más” 1995


domingo, 7 de outubro de 2012

Sonhos em 3D pela alameda


 

 

Filigranas de Outono, a bordejar o céu cinzento desta Alameda, de um tempo de tubos de

escape.

Nuvens de folhas, em remoinho perseguem-no, enquanto não o revestirem, não vão

descansar, enquanto não o cercarem no beco, como a fome de uma pequena matilha de cães

abandonados.

Aceitaria fazer de morto ou fingir de árvore derrubada, a história da intervenção dos bichos

mais adiante é que ainda lhe faz cócegas.

De resto, aquela humidade da terra que sente nas costas, pareceu-lhe o início de uma nova

vida ou talvez do crescimento das asas, sentiu-se por isso, naquilo que deveria ser a sua queda,

mais perto do céu.

Sentou-se num daqueles bancos clássico de tábuas de madeira pintadas de verde, a resistir ao

frio que anoitece nos seus pensamentos.

Divaga no xadrez de luzes dos prédios em frente. Vai reconstituindo os afazeres e conflitos

domésticos, daqueles vizinhos também eles de passagem, com tudo tão arrumado.

O bispo branco no seu movimento traiçoeiro e oblíquo comeu o cavalo, enquanto uma família

numerosa prosseguia, no seu frugal jantar.

Um casal de namorados que se preparava para a inocência desastrada do primeiro beijo

encostado a um tronco de uma amoreira, foi devorado pela máquina de lavar, da

marquise do 1.º andar, ali sobre a minha direita.

O mundo está estranho em Outubro, a Alameda está quase nua e quase morta, estranho

enigma é aquela nudez primordial.

Lá vamos, muito cegamente, a caminho do cadafalso, do caos, de olhos vendados, tropeçamos

na desconhecida pureza da neve, confundimos a alergia com o desabrochar das flores e

deixaremos de saber distinguir o perfume e as cores da fruta madura.

Nós os citadinos passamos a correr pela vida, porque estaremos sempre atrasados e quando

chegarmos ao destino, vamos descobrir que já é Verão e desistir de todas as outras

estações.

De qualquer forma, o aumento do preço dos bilhetes, não nos permite que nós tenhamos

outra dimensão nos sonho.

 

Lisboa, 7 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

Um caso de electricidade estática


 

 

Pode considerar-se

um absurdo

este candeeiro

aceso  no país

o dia inteiro.

 

O Sr. José

de tão confuso

perdeu um parafuso

por isso a lucidez

e o crédito.

 

De excesso de luz

e falta  de café

ainda iria

como tantos outros

adormecer de pé.

 

O candeeiro

cansado

de tanto esperar

foi-se deitar

sem tirar os sapatos.

 

No outro dia de manhã

o Sr. José apagou-se

abraçado a um poste.

 

Nota: Foram encontrados estilhaços de lâmpadas incandescentes debaixo dos lençóis.

 

Lisboa, 7 de Outubro de 2012

Carlos Vieira

 

 

 

 

 

 

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

HILOTAS



Hoje à tarde, andava pelo dicionário, como quem percorre as ruas de uma qualquer cidade desconhecida.
Gosto de ir de palavra em palavra, de conhecer-lhe os ângulos, os pormenores, a pátina das cores, a articulada sombra dos sorrisos e de música sonhada.
Depois de umas folhas, tropecei nesse remoto adjectivo, hilota, lembrei-me das conchas que apanhei numa longínqua e ignara praia do hem...
isfério sul, dos homens que transformam as pedras em casas e conhecem das nuvens e das aves apenas os sinais
Já tinham deixado, hirta, essa flor, essa palavra transida, ensimesmada, que se ergue nas paradas e nos exércitos, e que, em definitivo, molda o corpo dos jovens e dos mais velhos, preenchendo os hiatos das trincheiras.
Até que, finalmente, me deparei com os hilotas, de todos os países e tempos, que cada vez mais se iam concentrando na ancestral praça solar, praia, praça feita de sal e espuma, onde acorrem as ondas, as hordas dos vencedores das trevas e do medo.
Foi assim, que regressando neste Outono à praia de que são ignaros os bens falantes e os bens posicionados, a revi juncada do rumor de conchas, coalhada de ideias e do marulhar dos gritos dos cadáveres hirtos, dos nunca heróis.
Pressentia os hilotas cozidos à linha de água, de cabelos húmidos da maresia, observavam o movimento da linha do horizonte e certamente pescariam na distância o próximo futuro, o fruto maduro da liberdade que lhe permitirá, tomar o pulso de uma alegria perene, no percurso pelas palavras do coração onde hiberna o dicionário.

Lisboa, 5 de Outubro de 2012
Carlos Vieira

Parable of the Old Men and the Young


Futility ~ Wilfred Owen ~ Kenneth Branagh


Marina Rossell "Per tu ploro"