segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Desamor pela “vida”



É cínica e milimétrica a estultícia
a estratégia da aranha
o ácido que corrói a razão
tecendo curvas de nível
vítima de injustiça destila
veneno de cinza e solidão
e faz contas nas margens
da vida a mulher que dizem proscrita.

Não a vergam de fome ou de vergonha
da soez difamação ou do jugo
do muro das lamentações
olha em desafio o verdugo
rasga o pacto e na memória
da pele adormecida de luz
suporta o motim da ousadia
ainda que tal a possa levar de novo à cruz.

Crescem lancinantes por dentro de si
todos os espinhos e a revolta
o apelo mágico do desconhecido
os cantos de sereia do indulto
nem os toques suaves de reconquista
no território do cetim proibido
nada a vai desviar e fará que desista
da pura sumptuosidade da alma em nu absoluto.

Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira


                                                         “Awakening” Simona Mereu

sábado, 25 de agosto de 2012

Amor e morte


 

Não tolera

a leviandade

a perfídia

ou a armadilha

do teu corpo disponível

pouco importa

a labareda e os caracóis

dos teus cabelos

a hora é a sombra

de um tigre

que adormece

é sua a garra

na tua respiração

suspensa

a noite

uma romã

que te devora

 

Lisboa, 23 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

“Dream Caused by the Flight of a Bee around a Pomegranate, One Second before Awakening”

Salvador Dali

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Nasceu para ser selvagem



Sabe das pistas da selva
pela tua volubilidade animal
pela insolência das palavras
que proferiste
pelo teu gesto obsceno
no estalido das folhas secas
sob os teus pés
sabe do perigo que corres
na destemida fuga
por tudo isso
afasta-se de ti
embriagado da liberdade
do puro reflexo
das gotículas de orvalho
e por puro instinto
ama agora ferozmente
a natureza
a que pertences.

Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira

                                                            “Woman” By Kubicki

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Poema para um amor impossível


Nunca te perdoará

nem desiste

porque só assim

poderás sobreviver

e só dessa forma

te resiste

 

Lisboa, 23 de Agosto de 2012

Carlos Vieira


                                           “Illusion” from Impossible Love – Dorina Costras

Memória Astral


Lembra-se
que cada beijo e cada carícia
era um pensamento franco
teu rosto ao espelho
era uma estrela independente
acesa no fogo roubado
aos deuses da Terra
que se dispunham
subtilmente
à tua volta
agora és apenas
poeira sideral
dessa constelação
e aos deuses restam
as tuas cinzas.
Lisboa, 23 de Agosto de 2012
Carlos Vieira
 
 
 
                                          De Yayoi Kusma

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Diagnóstico: fractura do fémur




Suas mãos frágeis

são o último esplendor do verão

pousadas nas minhas

pequenos pardais delicados

sem ritmo

desafinados

ou quedam-se na cansada

ternura dos jogos de luz

que se lhe escapa entre dedos

e a fractura.



Seus olhos tristes

a desaprender a vida

pássaros mínimos

e sempre tão brilhantes

que foram álacres

e agora tão mais ávidos

da fractura  

dos ramos e das flores

e da fruta madura



Tua boca de ave

tão pequena

tão poupada de todos os beijos

tão sofrida

das intempéries dos grandes voos

e de todas as mortes

tão só das poucas palavras

de nomear

as dádivas luminosas

que irrompiam das suas mãos

curando tantas dores

e tantas fracturas

o mesmo milagre

do pão e das rosas





Na geografia do teu rosto

aqui tão perto do meu

aqui estás neste ângulo

de há tantos anos esquecido

exactamente

180º à minha frente

enquanto pela primeira vez

te dou desajeitadamente

uma colher de sopa

e nela avalio

o gesso das fracturas

de todas as mães.



Fico à tua espera

daquele teu golpe de asa

em forma de sorriso

durante todo o tempo da visita  

pela primeira vez ali estás

sortilégio de carne e osso

entre lençóis brancos

minha flor renascida

minha mãe mais dura

heróica e triste

que a mais esta fractura

da vida resiste

no meio do meu poema

levanta-se e anda.





Leiria, 18 de Agosto de 2012

Carlos Vieira



                                                                   Chagall – “Flight”


sábado, 18 de agosto de 2012

universalidade





pronto

aqui me encontro

envolto num turbilhão

de fumo branco

um pé firme na Terra

uma mão cheia de nada

ausculto o eco das letras

nas palavras ditas

sondo-lhe o encanto

na voz rouca do vulcão

no primeiro voo da escrita

quando a sós

na vertigem do céu

de um qualquer poema

ousamos o mistério e o fogo

e se desatam nós de espanto

frente à imponência do caos

que moldamos no barro

helicoidal e paciente

na curva da idade

que nos permite distinguir

o fulgor e a errância

de cada ponto

na miríade de pó suspenso

a tristeza vencida

dos rostos cintilantes de gente

que em cada estrela distante

são a semente prenhe

dos sonhos

na sua elipse de regresso

à humanidade



Porto de Mós, 18 de Agosto de 2012

Carlos Vieira