quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Mutações


Num corredor vi uma seta que indicava uma direcção e pensei que aquele símbolo inofensivo fora outrora uma coisa de ferro, um projéctil inevitável e mortal, que entrou na carne dos homens e dos leões e enevoou o Sol nas Termópilas e deu a Harald Sigurdarson, para sempre, seis pés de terra inglesa.
Dias depois, alguém me mostrou uma fotografia de um cavaleiro magiar; uma corda com várias voltas rodeava o peito da sua montada. Soube que a corda, que antes andara pelo ar e submetera os touros na pastagem, não era mais que uma gala insolente do arreio dos domingos.
No cemitério do Oeste vi uma cruz rúnica, lavrada em mármore vermelho; os braços eram curvos e afastados e rodeava-os um círculo. Essa cruz apertada e limitava a outra, de braços livres, que por sua vez figura o patíbulo em que um deus padeceu, a «máquina vil» insultada por Luciano de Samosata.
Cruz, corda e flecha, velhos utensílios do homem, hoje rebaixados ou elevados a símbolos; não sei por que maravilham, quando não há na terra uma só coisa que o esquecimento não apague ou que a memória não altere e quando ninguém sabe em que imagens o traduzirá o porvir.


Jorge Luís Borges. O fazedor. Trad. de Miguel Tamen

Sobre a lucidez

Tendo em vista com que lucidez e coerência lógica certos loucos justificam , a si próprios e aos outros, as suas ideias delirantes, perdi para sempre a segura certeza da lucidez da minha lucidez"

Livro do Desassossego - Fernando Pessoa

terça-feira, 14 de agosto de 2012

reencontro



eu estou de pé

depois da urze dourada

o teu corpo macio

está de bruços

é uma romã inquieta

pendurada na penumbra

nós estamos nus

como os astros inacessíveis

e a beleza dos números

tu és a gazela desconfiada

imediatamente antes do prado

que não resiste à tentação

de poder regressar  

trazes a inesquecível ironia

do teu sorriso tangente

a esculpir

os teus lábios perfeitos

fulgindo no olhar

que já foi triste

o teu desejo ouço-o

arqueando as tuas vértebras

no frémito do vento

és neste odor que dança

e que libertas

que me prendes ao sul

dos teus abraços

gume de palavra

nunca esquecida

na minha boca ferida

desliza a enrolar-se

nos pensamentos

que me traem

e a que me entrego

que serão afinal

na foice do desespero

a tua linha de fuga





Lisboa, 14 de Agosto de 2012

Carlos Vieira


                                                          Pintura de Boris Malafosse

Bosques De Mi Mente - Nostalgia

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Crime sem castigo






na geografia de cristal

há a subtil intercepção

de um tempo sem razão

há a sombra do punhal

na vertigem silenciosa

no itinerário das árvores

é pura a voz  estrangulada

e na sinfonia dos pássaros

não escorrem as lágrimas

que se sabem mais íntimas

de um olhar perturbado

ou próximas das estrelas

pelo vidro embaciado

da solidão das janelas

a testemunha protegida

observa o lento escorrer

do sangue  e apodrecer

do cadáver e da sua vida

apaga o rosto do assassino

a astúcia montada da teia

no peito tudo fica gravado

num depoimento cristalino

pelo periscópio da lua cheia



Lisboa, 13 de Agosto de 2012

Carlos Vieira

                                                       “Witness to Murder”  Bem Walker