sábado, 16 de junho de 2012

Lars Danielsson - The Linden

a vida por um tri(s)te


a vida por um tri(s)te



regressa à página vazia

a esse torpor húmido

de uma primavera sem flores

à asa suspensa

no aparo do medo

dentro de si procura a palavra

a raiz primordial

rastilho para o grande “boom”

do princípio de um novo mundo

as sôfregas mãos

presas nessa hidráulica

que liberta a corrente

da humanidade

que faz cair o pano

e o atordoa do espanto das aves

fósforo que acende o sorriso no olhar

o dedo a florir no gatilho

espreitas no longo cano negro da vida

o dourado projéctil

que tornaria vermelha a solidão

sem um pingo de tinta no coração

ele ali está exangue

depois da noite em branco

de regresso ao “felizmente à luar”

da última folha

ao deve e haver do amor e da morte

às estatísticas

de uma maior esperança de vida



Lisboa, 16 de Junho de 2012

Carlos Vieira

                                                      
“La Page Blanche” René Magritte

Extrato de texto de Philippe Sollers

"Num só Inverno já foram recenceadas mais de cem mil gaivotas pequenas n Île-de-France. Vindas do Norte (Países Baixos, Alemanha, Báltico, Bélgica), riem no céu de Paris. damos com elas nos lagos dos bosques de Vincennes ou de Boulogne, ou ainda nos Buttes-Chaumont. Dormem juntas, às centenas, na superfície aquática. A comida espera-as nos sacos plásticos que forram as latas de lixo das ruas ou do...s pátios dos prédios. Os seus territórios predilectos são os terraços e os espaços saibrados, mas também os aeroportos onde se podem divertir a morrer nos reactores dos aviões, armadas em autênticas terroristas. Aqui na ilha, muitas vezes voam em círculos e aos pares em torno de nós, planam, parecem defender o horizonte, por vezes tentam incursões na erva quando faz muito calor ou o temporal ameaça. Por um instante contemplo a covinha que tens a cima da bochecha esquerda, mão encostada à têmpora direita, a orelha despegada comestível, os dedos, o nariz fino. A questão que reaparece é a da "própria pureza". Isso, não esperava eu. Tu escutas, falas, voltas a escutar com ar sério, sorris, és uma paisagem mutante, passas, a mão pelo cabelo curto, o indicador volta-te um pouco à orelha, ao lóbulo da orelha, o polegar aflora-te a face, tornas-te frágil, mas não, eis-te de novo com força e fulgor. Levantas-te, vais procurar cerejas, que palavra magnífica, cereja, sem falar daquelas que esta induz, morango, framboesa, amora, ameixa, azeitona, mirtilo. Outras tantas sílabas para comer. Sentas-te de novo, atiras com os caroços para as ervas, suspiras, atas outra vez o lenço negro ao pescoço, vejo-te melhor uma das veias, bocejas, um gestozinho da mão direita em frente dos lábios. Dizes que tens sono, que vais dormir, deixas atrás de ti a tarde à contemplação vazia."

A ESTRELA DOS AMANTES

PHILIPPE SOLLERS

The Ingmar Bergman Prophecy

quarta-feira, 13 de junho de 2012

natureza morta da insídia



são ínfimos os fragmentos

talvez sejam porcelana antiga

que não resiste à minúcia de um olhar

descortinando o ardil



o esvoaçar da cortina

permitiu o fulgir da louça frágil

e perceber a sede acesa do lugar

na perplexidade inocente da carne



oiço a brisa de um alaúde

e a penumbra do perfume já distante

de uma pérfida Cleópatra

o papiro respira a amável escrita



no perímetro do vinho derramado

adivinhavam-se partículas do veneno

nas arestas de suor e nas esquinas

espreita a náusea e o véu do poder



após os cálculos desfeitos em pó

que tinha pairado nas horas mortas

intuem-se as vozes ciciadas

em ciladas mínimas mas bastantes



rastejam nos relógios vigiados

veludos não anunciados e perversos

na miríade de vestígios de carícias

sofre a nudez breves golpes de luz



Lisboa, 13 de Junho de 2012

Carlos Vieira



“A negação de S. Pedro” de Caravaggio