domingo, 20 de maio de 2012

Charade - Mari Nakamoto & Masahiko Satoh

sexta-feira, 18 de maio de 2012

amantes da madrugada


 
olho-te seminua
acendo sílaba a sílaba
o diálogo da tua pele
com os meus lábios
arde o cristal e o mel
e de pálpebras cerradas
 arde o sal pousa teu odor
e dentro de mim cresce
o rumor de um vulcão
tu impaciente esperas
vais ateando o fogo
mordes a madrugada
até que a tua língua afiada
desperta por fim  em êxtase
 no meu peito aflito
o último desejo
o mais duro de mim
na noite do teu corpo
assim germina o primeiro  
raio de sol e um beijo cego
cala o primeiro grito

Lisboa, 18 de Maio de 2012
Carlos Vieira

                                                                      “Lovers” de Ernst Ludwig Kirchner

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Devaneio de um anarquista




a festa era a todo comprimento do teu corpo nu

ente a vereda do feno e da sesta

um muro e o antigo trilho

por onde emerge a serpente lesta

um conto lânguido de futuro

era o alabastro do teu seio

um eco de leite

a foz

oiço ao longe

o pungente clarim

tornear o ombro da paz

onde descanso e encosto a arma

um apelo fugaz da alma

depois do estampido

uma revoada de pombas

levantando um véu de espanto

de liberdade

que coincide

com o cair da máscara

e do encanto

de ti mulher nua e despojada

serás sempre a notável persistência

das ondas na praia

és ainda o meu argumento

impossível de espuma

fulminante galáxia

de razão e de coragem

onde vou tateando

onde vou de viagem

pelo planalto

pela fragrância

do teu baixo ventre

e aí nessa trincheira

dos desprotegidos

defendo no compromisso

outra distância

outros tratados

de vencer a ganância

a incrível sedução dos nós

da madeira

dos dedos entrelaçados

na inegável  pertinência e audácia

de vencer  o medo da morte

a poesia do teu sangue tão azul nos mapas

onde inventámos os lugares dos abraços

depois acordávamos

de mãos dormentes

com o galope dos cavalos

de freio nos dentes

pelos prados

nas curvas de nível

numa insensatez de beijos

acreditávamos e sabíamos de tudo

seguíamos um rumo

de olhos fechados



Lisboa, 16 de Maio de 2012

Carlos Vieira



                                          Fernando Pessoa  “O Homem é do tamanho do seu sonho

terça-feira, 15 de maio de 2012

Demência (1)


Bateram à porta e bateu o meu coração, tem meses que não os oiço, nem as pancadas, nem o coração. Estou cada vez mais velho e mais surdo. Quem poderá ser, a estas horas, o que pode ser?!

Espreito pelo óculo embaciado, espreito o rosto vagamente familiar que sorri do outro lado do mundo. Será um anjo ou a morte. Tudo me parece muito suspeito que venha sem avisar. Não abro a porta a estranhos.

Agrada-me este silêncio na casa, de cada ruído ter apenas a minha explicação, a minha respiração e a intermitência dos carros no fim da noite, da rua e a merda da torneira que pinga. A vizinha de cima discute, de forma aberta, a sua infidelidade e a do marido. Amor com amor se paga.

Gosto dos livros sobre a mesa desfraldados na corrente de ar, do cd que avança às voltas até se perder, no labirinto que criou. Onde raio se meteu a chave da despensa. Lembro-me no entanto, do toque suave da tua camisa de seda e da tranquilidade com que te despias e eu já não encontrava a saída.

Depois desapareceste, num ápice a tua silhueta curvou-se e entrou para aquele luxuoso carro preto que te veio buscar. Naquele dia chovia ou foram lágrimas que eu requisitei para aquele momento. Desde sempre cultivaste uma certa mania da perseguição.

O tempo veio mesmo a propósito e quase consegui apagar-te. Apenas deixaste detalhes, coisas marginais, aos teus olhos e olhar sucederam-se coisas maiores, relâmpagos e trovões, depois de ti, seguiram-se mais tempestades e o Inverno aconteceu mais vezes do que aquilo que era comum e foi o dilúvio.

Fico aqui a aguardar, no fundo foste tu que me conquistaste e fui eu que te perdi, não existe pior conjugação de resultados, pelo menos, podia haver uma forma de te desentranhar deste quarto e do teu perfume não estar sempre tão presente.

Neste caos em que o mundo para mim se transformou, a espaços reencontro-te aqui em casa, não te raptaram completamente, fui sobretudo eu que te deixei meu amor, tu sabes o caminho do meu coração e tu deixaste de habitar a minha memória.



Lisboa, 15 de Maio de 2012

Carlos Vieira


Luar na Lubre - Desterro