sexta-feira, 13 de abril de 2012

Destreza

quinta-feira, 12 de abril de 2012

O jogo do mundo




"O jogo da macaca joga-se com uma pedra que tem de se empurrar com a biqueira do sapato. Ingredientes: um passeio, uma pedra, um sapato e um belo desenho feito com giz, de preferência colorido. O Céu está lá ao fundo e a Terra aqui em baixo, é muito difícil acertar com a pedra no Céu, calcula-se quase sempre mal e a pedra sai do desenho. Pouco a pouco, no entanto, vai-se adquirindo a habilidade necessária para acertar em todas as casas (a macaca em caracol, rectangular, de fantasia, pouco utilizada), e um dia aprende-se a sair da Terra e a levar a pedra até ao Céu, até chegar ao Céu (…); o problema é que é precisamente nessa altura, quando quase ninguém aprendeu ainda a levar a pedra até ao Céu, que a infância se acaba e de repente se cai nos romances, na angústia inútil, na especulação de outro Céu ao qual também é preciso aprender a chegar. E como já se saiu da infância (…) esquece-se que para chegar ao Céu são necessários uma pedra e a biqueira do sapato, como utensílios básicos."


O Jogo do Mundo (Rayuela)

requiem por uma amizade

robert schindel /


Morreu o meu hóspede, vejo-o ainda a descer, a descer
Pelo caminho abaixo com a distância nos cabelos.
E de noite, quando as estrelas o permitem, serpenteia, serpenteia
O seu eco no coração, morreu o meu hóspede.

Um riso, um sapato, o violino de estar aqui
Bebíamos um copo ou dormíamos nas palavras mais novas
E havia segundos que fazíamos explodir
Saltar da lama do tempo, para assim o podermos entender.

Agora foi-se, o seu nome descansa, descansa o tempo
Levanto os pés do caminho e vou andando
Às arrecuas pelo atalho, o eco traz-me
O longe e o perto, eu e nunca, o hóspede-amigo do lado de lá.

Há por aqui outras paisagens?, perguntam por vezes as crianças.
Eu parto o caminho em pedaços e ofereço-lhes
Serpentinas, serpentinas, que elas recebem como maçãs e papoilas.
Porque tempos houve em que dormíamos nas palavras,
Tempos houve em que fazíamos explodir o tempo.
 
robert schindel

Star Mile - Joshua Radin

EM SINTRA


As águas maravilham-se entre os lábios
e a fala, rápidos
em Sintra espelhos surgem como pássaros,
a luz de que se erguem acontece às águas,
à flor da fala
divide os lábios e a ternura. Da linguagem
rebentam folhas duma cor incómoda, as de que
maravilhado de água surges entre
livros, algum crime, um
menino a dissolver-se ou dele os lábios e ergues
equívoca a luz depois. Rápidos
espelhos então cercam-te explodindo os pássaros.

(Luís Miguel Nava) *

in «Poesia Completa 1979-1994», 2002

Bliss - Trust In Your Love

quarta-feira, 11 de abril de 2012

A Cidade


A cidade

repousa anestesiada num berço de luz

em que ficamos simples, impávidos e nus

em que nos cingimos ao falsete da voz

que nega a cidade grávida dentro de nós.



A cidade

nos dias de sol, onde o nada acontece

embrulhada no cerco de voos de pardais

a casa ali está húmida naquilo que parece

em punhos que lhe rebentam pelos beirais.



A cidade

no rosto suado da mulher que sustive

num tempo de lhe moldar o suave declive

de lhe compor os cabelos em desalinho

de lhe escutar o canto e de servir o vinho.



A cidade

das palavras a secar nas pautas dos estendais

dos contrapontos de gatos em noites estivais

em aromas de alecrim e de hortelã sem razão

de morder a romã em 2m quadrados de solidão.



A cidade

das arquejantes velas em fatias de azul turquesa

a sobrevoar o olhar cruzado no império da tristeza

nos quarteirões os pombos desfiam antenas

cagam as estátuas enquanto arrulham poemas.



A cidade

de águas furtadas onde se enroscam tapetes persas

exótica exalas o oriente no caril impregnado das sedas

há pequenas encenações e adereços da glória  e da fome

cínica assistes ao acessório e efémero sucesso sem nome.



A cidade

de janelas da vida entrecortada das pessoas

histórias de quadradinhos, de persianas e de névoas

no deve e haver dos bancos, filas de gente em vigília

poupam de baraço ao pescoço nos sonhos da família.



A cidade

das coisas excessivamente óbvias e das rotinas do decoro

inocentes na pedra da praça, a fruta e o peixe que te devora

as melancias e as suas desmedida esperança de sementes 

que na suave fragrância das folhas de louro adormecera.



A cidade

da mulher das flores sempre com a mesma vida a medo

na mesma temperatura e delicada desmesura

na coroação do amor e no xaile negro amortalhada

com as rosas nas mãos e nos lábios o ocaso do segredo.



A cidade

onde se mastigam jornais de massa tenra ao pequeno-almoço

entre um galão e uma meia torrada, uma meia notícia

do correspondente de guerra que nunca terá sido fria

de alvoroço de ruas juncadas de crianças mornas quase vivas.



 A cidade

de jornais onde escorre o sangue e a tinta e o sangue

onde se faz mínima a justiça pelas próprias linhas

só nas margens das páginas se vive nos limites

em fuga às escabrosas entrelinhas das manchetes.



Minha cidade

porque caminho ínvio te meteste

não é bom augúrio o teu céu ébrio de gaivotas

percorro os teus jardins e praças e esplanadas

explica-me porque recusaste o que prometeste

porque acolhes mansamente o gesto dos déspotas

que esconderam traiçoeiros o gume  das espadas.



Minha cidade

luminosa, dos homens ávidos de palavras e de ideias

porque não voltas a desembainhar o lume das flores

e não és outra vez a primavera no adro das aldeias

numa explosão de abraços, de cores e de verdade.



Lisboa, 11 de Abril de 2012

Carlos Vieira


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