sexta-feira, 2 de março de 2012

Afagando a História - Ferramentas & Gente


Ferramentas & Gente



Afagando a História



O seu pai que não era rico

tinha uma enxó muito grande

ou ele é que era muito pequeno

e pensava que o seu pai era rico

porque tinha uma enxó muito grande



lembra-se de vê-la a descansar

em torno do passado

na sua imobilidade réptil

em cima do banco de carpinteiro

cercada dos caracóis da madeira afagada

e ele sem descanso para lhe pegar



conhece-a só de olhar

como as palmas das suas mãos

e os nós dos dedos do seu pai

as suas mãos ásperas

de amansar os nós das tábuas

e de puxar as orelhas ao mundo



lembra-se como se fosse ontem

era uma vez uma lâmina

ou uma língua inclinada lambendo

arestas e feridas e vértices de pinho

uma ferramenta tosca

entregando-se à ternura hábil

das suas mãos comedidas

que nenhuma morte

lhe pôde arrancar

nem o vaivém do tempo

pôde aparar.



Lisboa, 8 de Dezembro de 2011



Carlos Vieira


quinta-feira, 1 de março de 2012

Lucio Dalla - Caruso


Morreu hoje, quinta-feira, o cantautor italiano Lucio Della.


http://www.publico.pt/Cultura/morreu-um-dos-musicos-italianos-mais-importantes-lucio-dalla-1535982

Poema

Qui dove il mare luccica
e tira forte il vento
su una vecchia terrazza davanti al golfo di Surriento
un uomo abbraccia una ragazza
dopo che aveva pianto
poi si schiarisce la voce e ricomincia il canto:

Te voglio bene assai
ma tanto tanto bene sai
è una catena ormai
che scioglie il sangue dint'e vene sai...

Vide le luci in mezzo al mare
pensò alle notti là in America
ma erano solo le lampare
e la bianca scia d'un'elica
sentì il dolore nella musica
si alzò dal pianoforte
ma quando vide la luna uscire da una nuvola
gli sembrò più dolce anche la morte.
Guardò negli occhi la ragazza
quegli occhi verdi come il mare
poi all'improvviso uscì una lacrima
e lui credette d'affogare.

Te voglio bene assai
ma tanto tanto bene sai
è una catena ormai
che scioglie il sangue dint'e vene sai...

La potenza della lirica
dove ogni dramma è un falso
che con un po' di trucco e con la mimica
puoi diventare un altro
Ma due occhi che ti guardano
così vicini e veri
ti fanno scordare le parole
confondono i pensieri.

Così diventò tutto piccolo
anche le notti là in America
ti volti e vedi la tua vita
come la scia d'un'elica.

Ah si, è la vita che finisce
ma lui non ci pensò poi tanto
anzi si sentiva già felice
e ricominciò il suo canto:

Te voglio bene assai
ma tanto tanto bene sai
è una catena ormai
che scioglie il sangue dint'e vene sai...
Te voglio bene assai
ma tanto tanto bene sai
è una catena ormai
che scioglie il sangue dint'e vene sai...

     Tradução para português


Aqui onde o mar brilha,
E o vendo uiva,
Em um velho terraço sobre o golfo de Sorrento,
Um homem abraça uma moça
Após ter chorado.
Então afina a voz e recomeça a cantar:

“Gosto tanto de ti;
Tanto, tanto, sabes.
É um vínculo agora
Que descongela o sangue nas veias, sabes.”

Ele viu as luzes lá no mar
E pensou nas noites lá na América
Mas eram só as lâmpadas [dos pescadores]
E a branca espuma duma hélice
Ele sentiu a dor da música.
Levantou-se do piano,
Mas quando viu a lua sair detrás das nuvens
A morte até lhe pareceu mais doce.
Olhou nos olhos da moça,
Aqueles olhos verdes como o mar,
Então, de repente caiu-lhe uma lágrima
E ele acreditou que estava se afogando.

“Gosto tanto de ti;
Tanto, tanto, sabes.
É um vínculo agora
Que descongela o sangue nas veias, sabes.”

A força da ópera
Em que todos os dramas são uma farsa
Onde com um pouco de maquiagem e com mímica,
Te podes tornar outro.
Mas dois olhos que te olham
Tão perto e tão verdadeiros
Fazem-te esquecer o guião
Embaralhando os teus pensamentos.

Assim tudo se tornou pequeno,
Até as noites lá na América.
Olhas para trás e vês a tua vida
Como a espuma [dos barcos].

Ah sim, é a vida que acaba,
Mas ele já não se preocupa com isso.
Até se sentia feliz
E recomeçou a cantar:

“Gosto tanto de ti;
Tanto, tanto, sabes.
É um vínculo agora
Que descongela o sangue nas veias, sabes.”

“Gosto tanto de ti;
Tanto, tanto, sabes.
É um vínculo agora
Que descongela o sangue nas veias, sabes.”

O mar salgado...

O mar é salgado
o sol é doce
o solstício é um encontro a sós
do sol consigo mesmo
o sal um suave milagre
as lágrimas até podem ser
a agridoce manifestação
de um solstício dentro de nós
o que nos consola
é saber o rumo do sol
e o reflexo do sal
presos nas redes
nos abraços das águas na foz
homens inteiros e secos
a prumo e de cara lavada
de sal e sol

Lisboa,1 de Março de 2012
Carlos Vieira
                                                          “Into the Sun” John P. Butler

Fiordes, de Bödo a Kirkenes

                                             
                                            Hurtigruten - "A Viagem Mais Bonita do Mundo"
                                                                         Junho/2011

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Masao Yamamoto by Canet Le Rouge

Reflexão num abrigo de montanha


Ludibriar o guardião da penumbra
fazer a bola passar-lhe entre as pernas
depois dessa  genuína e infantil artimanha
urdir um louco pretexto de amor livre
e ser ele o luzeiro que oculto murmura
nosso engenho do vento a iludir a censura
e nesse mirabolante ardil de luz e de sol
nunca deixará de cintilar dentro de nós
a voz cristalina e inquieta da montanha
que sobre o imenso manto branco de neve
sobressaltos de abismos e de beijos adormece.

Lisboa, 27 de Dezembro de 2011
Carlos Vieira

“ravens”  Arnt Flamto



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

DO FUNDO DE UM POÇO



Havia muitos poços na infância, ela própria, ainda hoje poço primordial da minha sede, no quintal que se perdeu da casa dos meus pais.

 Lembro-me de olhar para dentro dele e sair em seco do outro lado do mundo, dos caminhos em círculos concêntricos dos peixes e da curiosidade das rãs, onde o meu rosto, na moldura dum céu sem nuvens, lhe fazia adivinhar ainda assim, uma chuva de pedras.

 Ainda está fresca na minha memória, a água que retirava do balde, em alegrias de dar à corda, a inebriante música, feita de arabescos, de sonhos de odaliscas e dos movimentos mínimos e insondáveis dos mecanismos da nora e do percurso final da água, num mármore branco que já fazia parte da minha sede.

 A minha memória do verão é feita do gesticular das picotas nos campos, a que se sucedeu o troar dos motores de rega, junto de circunferências de tijolos vermelhos, semeadas pelos terrenos com cerca de um metro de altura, que nos separavam do abismo.

 Até que um dia, o poço deixou de ser esse mistério profundo, onde os animais da mitologia se poderiam encontrar e se guardavam os tesouros das guerras e dos grandes injustiçados da História.

 O meu pai disse-me, “- Para a semana, vamos limpar o poço!”, tal determinação e tarefa no meu metro e pouco de tamanho, perante os muitos metros de profundidade do mesmo, assumia dimensão que nem o Hércules mais competente ou mais dotado poderia realizar, sem correr riscos desmedidos.

 Todos os dias sonhava com aquele dia, em que desceria à noite do poço e poderia olhar de frente a morte, as rãs e os peixes e os pardais que tinham a ousadia ou a imprudência, de fazer ninhos nas suas paredes.

 Até que chegou o dia e através do sarilho, depois de ser despejada a água do poço, desci nos meus doze anos até aos vinte metros, não sei se estarei a meter água, nem sei se sabem o que é um sarilho, uma geringonça de outro século que nos mantinha a esperança de voltarmos ao século vinte, e que ao mesmo tempo que retirava a terra que se tinham acumulado ou outros detritos no fundo poço, nos trazia também o almoço.

Aquele poço ajudou-me a ver que nas entranhas da terra, o céu era apenas uma luz ao fundo do túnel, a perceber a pobreza e fragilidade dos sonhos confinados e o valor da corrida, em linha reta, pelas estradas de terra batida dos campos, nem que fosse apenas contra o vento ou contra a chuva, ensopado até aos ossos, naqueles outros lençóis de água verticais.

 Lisboa, 27 de Fevereiro de 2012

Carlos Vieira