Havia muitos poços na infância, ela própria, ainda hoje poço
primordial da minha sede, no quintal que se perdeu da casa dos meus pais.
Lembro-me de olhar
para dentro dele e sair em seco do outro lado do mundo, dos caminhos em
círculos concêntricos dos peixes e da curiosidade das rãs, onde o meu rosto, na
moldura dum céu sem nuvens, lhe fazia adivinhar ainda assim, uma chuva de
pedras.
Ainda está fresca na
minha memória, a água que retirava do balde, em alegrias de dar à corda, a
inebriante música, feita de arabescos, de sonhos de odaliscas e dos movimentos
mínimos e insondáveis dos mecanismos da nora e do percurso final da água, num
mármore branco que já fazia parte da minha sede.
A minha memória do
verão é feita do gesticular das picotas nos campos, a que se sucedeu o troar
dos motores de rega, junto de circunferências de tijolos vermelhos, semeadas
pelos terrenos com cerca de um metro de altura, que nos separavam do abismo.
Até que um dia, o
poço deixou de ser esse mistério profundo, onde os animais da mitologia se
poderiam encontrar e se guardavam os tesouros das guerras e dos grandes
injustiçados da História.
O meu pai disse-me,
“- Para a semana, vamos limpar o poço!”, tal determinação e tarefa no meu metro
e pouco de tamanho, perante os muitos metros de profundidade do mesmo, assumia
dimensão que nem o Hércules mais competente ou mais dotado poderia realizar,
sem correr riscos desmedidos.
Todos os dias sonhava
com aquele dia, em que desceria à noite do poço e poderia olhar de frente a
morte, as rãs e os peixes e os pardais que tinham a ousadia ou a imprudência,
de fazer ninhos nas suas paredes.
Até que chegou o dia
e através do sarilho, depois de ser despejada a água do poço, desci nos meus
doze anos até aos vinte metros, não sei se estarei a meter água, nem sei se
sabem o que é um sarilho, uma geringonça de outro século que nos mantinha a
esperança de voltarmos ao século vinte, e que ao mesmo tempo que retirava a
terra que se tinham acumulado ou outros detritos no fundo poço, nos trazia
também o almoço.
Aquele poço ajudou-me a ver que nas entranhas da terra, o
céu era apenas uma luz ao fundo do túnel, a perceber a pobreza e fragilidade
dos sonhos confinados e o valor da corrida, em linha reta, pelas estradas de
terra batida dos campos, nem que fosse apenas contra o vento ou contra a chuva,
ensopado até aos ossos, naqueles outros lençóis de água verticais.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2012
Carlos Vieira