sábado, 31 de dezembro de 2011
Outro Inverno na mesma alameda de sempre
Sol de Inverno
natureza morta
a outra para lá caminha
aves arremessadas
ao céu como pedras
do caminho
o vento corre
pelas ruas desertas
paro, escuto e olho, e nada
a chuva promete
as nuvens passam distraídas
e nós vamos com as nuvens
nesta encruzilhada
do presente a que chegamos
perdemos por falta de comparência
ficamos a tiritar de frio
e do tiroteio nos abrigos das guerras
no tronco nu pulsa-nos um tira-teimas
no inverno a morte é mais fria
é como uma dormência no corpo todo
copo cheio de pedras de gelo
nas árvores, nem flores
nem folhas, nem frutos
daqui vos saúdo últimos resistentes
e sendo assim o conhecimento
é esta luz velada do Inverno
um tempo de misericórdia
Lisboa, 31 de Dezembro de 2012
Carlos Vieira
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
Linha do Tua é a morte anunciada dos transmontanos - JN
Linha do Tua é a morte anunciada dos transmontanos - JN
Era uma vez uma linha, um comboio, um rio selvagem...um país!
Era uma vez uma linha, um comboio, um rio selvagem...um país!
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
O céu é das crianças!
I
Vi nos seus olhos
de menino
pântanos a levedarem a fome
escolhos de silêncio
e gritam e “es-correm” pelo jornal
nós ficamos de cabeça à roda
ou mudamos de página
como quem muda de paisagem
II
E ali ficam eles crianças
presos a nós
como grilhões sem nome
manchados pelas notícias
ficam nossos dedos
de todas as áfricas
de todas as perplexidades
neste sucessivo abuso
da sua nudez
agora embrulhada
nas primeiras páginas
III
Na indisfarçável vergonha
fazendo-se fortes
no disfarce dos medos
na agressão
da sua mão estendida
vendem pensos rápidos
na sua vida
que segue interrompida
na luz vermelha
em carne viva
em todos os semáforos
IV
Nota-se contudo o desgaste
a desilusão
as vidas e as mortes prematuras
nas elipses das cristas papilares
sinto-as todos os dias
em sapatos que nascem da sua mão
e tropeço em sonhos de pé descalço
e custos de produção
V
Uma carícia de criança
é uma flor que não tem preço
neste tempo das crianças sem ruas
e de crianças de rua
isso que fazes não é brincar
nem é esse preço que se pague
pela ternura
VI
Cada vez
há mais filhos sem família
e há mais famílias sem filhos
cada vez mais abandonados
ou completamente sós
ainda crianças e já rodeados de filhos
crianças que nunca tiveram família
crianças que são pais e mães de família
crianças que aprendendo a amar a solidão
para não ficarem completamente sós
podem ficar para sempre sozinhas
VII
Crianças
que andam “à escola”
que não andam na escola
que sempre andaram na escola
que sempre vão andar na escola
que nunca foram crianças
que serão sempre crianças
sendo certo que as escolas
são para as crianças
que as escolas são
cada vez menos
para as crianças
VIII
Crianças
que sabem escrever
e que não sabem ler
que sabem ler
e não sabem escrever
e que sempre passaram de ano
e que fintam o insucesso
na escola da vida
sem saber ler nem escrever
Lisboa, 27 de Dezembro de 2011
Carlos Vieira
A inteligência da criança observa amando e não com indiferença – isso é o que faz ver o invisível.
(Maria Montessori, pedagoga italiana)
Fotografia de Kevin Carter
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
As Cartas
As Cartas
Esperas os sinais da minha existência.
Eu transcrevo-te mas não vivo no poema.
Morro na mancha de papel. Ûma carta cai
no matagal como um pássaro. O não ser
caçadora dá-me um sentido conciso da
realidade. Nem os belíssimos perdigueiros
me sentirão passar aqui. Eles
não me vêem até ao âmago. Tudo
o que é exterior e visível como
o corpo atrai-os. Tenho um limite
onde estou e nada está. As cartas
caem diante da avidez de cães.
Vou existir onde jamais vivi.
Âmago antologia - Fiama Hasse Pais Brandão
Esperas os sinais da minha existência.
Eu transcrevo-te mas não vivo no poema.
Morro na mancha de papel. Ûma carta cai
no matagal como um pássaro. O não ser
caçadora dá-me um sentido conciso da
realidade. Nem os belíssimos perdigueiros
me sentirão passar aqui. Eles
não me vêem até ao âmago. Tudo
o que é exterior e visível como
o corpo atrai-os. Tenho um limite
onde estou e nada está. As cartas
caem diante da avidez de cães.
Vou existir onde jamais vivi.
Âmago antologia - Fiama Hasse Pais Brandão
segunda-feira, 26 de dezembro de 2011
40 Ladrões
Ontem,
foram 40 os ladrões que adormeceram na minha casa.
Soerguem-se fantasmas e alguns hábitos ancestrais,
após o dia de pilhagens pelo que resta da cidade.
Esgotados,
sucumbiram de cansaço
e dormem agora
num sono de justos,
sem pesadelos,
sem remorso.
Até podia denunciá-los agora
ou distribuir o saque:
os segredos inconfessáveis das pedras
das preciosas e das outras,
as roupas de tecidos raros, diáfanos,
gaiolas de onde voam e onde regressam os pássaros,
os objectos afáveis, domésticos,
nos afectos
dos gestos de beleza crua,
vulneráveis no obséquio.
E eu sibilino, astuto receptador,
fariseu,
a manipular as contas do amor.
Os 40 mágicos
às vezes desenham o sol
no fundo da noite mais escura,
enquanto oiço o bocejar das horas,
venderam a lua ao desbarato.
Não há tempo
para a destreza dos beijos.
Indicam-me o oriente como quem teme
o presente,
como quem foge
às fogueiras dos ciganos,
das vidas tristes,
mostram-me golpes de mão e sorrisos,
contam-me as quedas em silêncio,
perdidos nos becos da vida,
sabem das enseadas do coração.
No gume do seu olhar
há uma infinita misericórdia,
as pessoas entregam-se agradecidas,
desarmadas,
após o canto final do amor desavindo.
nem um sabe o caminho,
não querem saber.
Eu guio-os pelas encruzilhadas do vento,
pelo trilho mais longo da vida.
Acordo-os cedo,
para lhe ensinar
a vencer a fome, a dor, a madrugada.
Perco-os depois nos desfiladeiros de luz
e ao longo das margens dos regatos,
vão embriagados
pela enorme curiosidade
dos peixes,
à superfície da aventura.
Em qualquer altura
posso ser chamado a testemunhar,
o sermão e a alegria
dos que não ficaram para trás.
Lisboa, 26 de Fevereiro de 2011
domingo, 25 de dezembro de 2011
O Poema
O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de
incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do
apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há
poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O
poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos
nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no
mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O
poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agi-
tação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o
inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina
o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que
o mundo repudia.
José Tolentino Mendonça
incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do
apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há
poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O
poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos
nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no
mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O
poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agi-
tação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o
inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina
o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que
o mundo repudia.
José Tolentino Mendonça
sábado, 24 de dezembro de 2011
Luzes de Natal
As luzes de Natal
Não iluminam
Tremem de frio
As luzes de Natal
Brilham
Vemos mais pobres
As luzes de Natal
A acender e a apagar
O sono das sombras
As luzes de Natal
No presépio
A estrela apagada
As luzes de Natal
O comércio
Não está brilhante
As luzes de Natal
A mulher mudou de rua
Não mudou de vida
AS luzes de Natal
Não, são os clarões
Dos canhões de 30 mm
As luzes de Natal
Dançam na noite fria
Da cidade deserta
As luzes de Natal
Aos milhares nas ruas
Escondem as estrelas do céu
As luzes de Natal
O olhar e os olhos da criança pobre
Sem brilho
As luzes de Natal
E os cães vadios
Não descansam à noite
As luzes de Natal
Todo o ano só naquela cela
Se permitiu o brilho da opinião.
As luzes de Natal
Acesas na vida dos mineiros chilenos
E na morte dos da Nova Zelândia
As luzes de Natal
E a mão estendida
Dentro do bolso
As luzes de Natal
Glória efémera
De morte anunciada
As luzes de Natal
Penduradas nos discursos oficiais
Já cansados do futuro
As luzes de Natal
De plástico, eléctricas, a velar
A morte prematura das árvores jovens
As luzes de Natal
Flores de melancolia
E solidária solidão
Lisboa, 18 de Dezembro de 2010
Carlos Vieira
39º
A ave que arde na garganta sufoca o grito
Um golpe de asa apaga-se no olhar
O rescaldo é feito de gestos de silêncio aflito
Ternura exausta de árvore secular
Lisboa, 16 de Junho de 2010
Carlos Vieira
Um golpe de asa apaga-se no olhar
O rescaldo é feito de gestos de silêncio aflito
Ternura exausta de árvore secular
Lisboa, 16 de Junho de 2010
Carlos Vieira
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