segunda-feira, 28 de março de 2016

Delírio de Corto Maltese

Delírio de Corto Maltese

Meu amor
sabes-me
a navegar
sem alternativas
por entre escolhos
contra corrente
sabes do sal
da maresia
nos meus lábios
a beijar
teus olhos
sabes
dos argumentos
de ventos
no cabelo
emaranhado
meu amor
nesta viagem
de novo
capitão
do meu leito
na tua solidão
só sei de ti
e do teu jeito
tudo desfeito
no rodopiar
do leme
à proa
desta
nau sem rumo
minha princesa
perene
e sempre
reinventada
a todo
o momento
em coroas
de espuma
e diademas
de firmamento.

Lisboa, 28 de Março de 2016
Carlos Vieira

Separação de águas



Que existirá por detrás
da escória humana
que reflexo condicionado
no gesto fétido
e que indecisa cobardia
que objeto ocasional
constrói essa penumbra
onde se tece hábil
o sorriso rasteiro
que fogo inquisidor
quis a palavra fácil
ou astuta armadilha
ao pretender confundir
a mais pura afeição
foi do cinturão
quando era ainda
ternura afável
que se empunhou
a lâmina justa
que veio a desferir
o golpe cruel
ficaremos sempre
na estupefação
do inevitável?
ou continuaremos
este hercúlea tarefa
da impossível
separação de águas
no lençol tranquilo
desse reflexo tão subtil
como valioso
da ondulação suave
dos versos
e reversos da poesia
e da vida.


Lisboa, 28 de Março de 2016
Carlos Vieira

domingo, 27 de março de 2016

Colagem quase imperceptível de um retrato


Tornou-se
irrespirável a visão
do teu corpo tóxico 
o seu contacto
meu corpo é estranho
na sua ausência
curiosamente
consigo sintonizar
na pele do teu ventre
um acorde de amêndoas
eu de novo fora de mim
vivo de equívoco em equívoco
como se a tua omoplata
fosse uma asa delta
e a tua anca firme estivesse
a mais de dois dedos do sublime
se oiço a seiva que te percorre
deixo de saber quem sou
posso confundir-te
com murmúrios de bétula
nos bosques do Norte
e na superfície gelada dos lagos
vivo sonhos embaciados
onde procuro a indescritível
suavidade cúmplice dos teus lábios
e a nossa respiração ofegante
é um silêncio ainda aceitável
para esta vida.
Lisboa, 26 de Março de 2016
Carlos Vieira


De Pé...

De pé
testemunho
rajadas de vento
a pentear a urze
a desfolhar o granito
nas escarpas
hirto a desafiar
abismos da natureza
e de mim.
Gerês, Novembro de 2015
Carlos Vieira


Um imbecil...

um imbecil
apoderou-se da consola do farol
e um leque de luz varreu o litoral
e um lobo uivou no areal
e a sereia naufragou na neblina
deixo os meus pensamentos
eu vou ao seu encontro
e dou-lhe o rumo e a música
da poesia
Lisboa, 26 de Março de 2016
Carlos Vieira

Ode à restauração das vidas frágeis


Observo
os detalhes
da louça chinesa
o vermelho velho
dos arbustos
e a melancolia
dos pássaros
vislumbro
o lodo verde
dos deltas
habitados
de peixes
curiosos
e o ténue
reflexo
de um tigre
à espreita
na selva
há também
um junco
à deriva
ficou intacto
sobre o azul
desmaiado
cintila
agora ancorado
na confluência
das linhas
da minha mão
que recolhe
do chão da sala
cada fragmento
em arestas vivas
tento recuperar
a cor e o risco
que diz a dor
e a fome
do artífice
e dar
nas coordenadas
da minha breve
alegria
a mesma inteireza
àquelas vidas
de frágil
porcelana.
Lisboa, 26 de Março de 2016
Carlos Vieira

Noite


Chegou a noite
e seu delírio
de estrelas
e sua alcateia
de sombras
deus ex machina
que nos envolve
no suor frio
de tantos medos
e em regaços
de torpor
nesse manto
de sono
e de cansaços
depois
ali ficamos
à mercê
a desafiar
monstros
de filmes
e de BD
a acordar
os sonhos
nos braços
de fadas
e das princesas
anorécticas
e oxigenadas
enquanto
se erguem
da terra
fantasmas
ávidos
de sangue
e de luz.
Lisboa, 25 de Março de 2016
Carlos Vieira