quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Corredor de Freiras



Talvez tenhas razão:
talvez a verdadeira paz
somente se encontre
num lugar escuro como este,
num corredor de colégio,
onde as raparigas se pavoneiam a cada dia,
deixando nas paredes
casacos e capuzes;
Onde os velhos pobres
que vêm pedir
se contentam com umas poucas moedas
oferecidas por Deus;
Onde, ainda cedo, por culpa
das janelas fechadas,
se acendem as lâmpadas
e não se aguarda
ver morrer a luz,
ver morrer a cor e a saliência das coisas;
Contudo, ide ao encontro da noite
com outra luz acesa ao alto,
e a alma que arde não sofrerá
a revelação da sombra.

Antonia Pozzi
Milão, 12 de Novembro de 1931
(tradução de Tiago Nené)



Os Loucos


Há vários tipos de louco. 

O hitleriano, que barafusta. 
O solícito, que dirige o trânsito. 
O maníaco fala-só. 

O idiota que se baba, 
explicado pelo psiquiatra gago. 
O legatário de outros, 
o que nos governa. 

O depressivo que salva 
o mundo. Aqueles que o destroem. 

E há sempre um 
(o mais intratável) que não desiste 
e escreve versos. 

Não gosto destes loucos. 
(Torturados pela escuridão, pela morte?) 
Gosto desta velha senhora 
que ri, manso, pela rua, de felicidade. 

António Osório, in 'A Ignorância da Morte'



Esquece-te de Mim, Amor


Esquece-te de mim, Amor, 
das delícias que vivemos 
na penumbra daquela casa, 
Esquece-te. 
Faz por esquecer 
o momento em que chegámos, 
assim como eu esqueço 
que partiste, 
mal chegámos, 
para te esqueceres de mim, 
esquecido já 
de alguma vez 
termos chegado. 

António Mega Ferreira, in “Os Princípios do Fim”



Quando o homem entra na mulher (Anne Sexton)

Quando o homem 
entra na mulher, 
como a rebentação 
batendo na costa, 
uma e outra vez, 
e a mulher abre a boca de prazer 
e os seus dentes brilham 
como o alfabeto, 
Logos aparece ordenhando uma estrela, 
e o homem 
dentro da mulher 
ata um nó, 
de modo que nunca mais 
possam voltar a separar-se 
e a mulher 
trepa a uma flor 
e engole o seu pecíolo 
e Logos aparece 
e solta os seus rios.




Este homem, 
esta mulher 
com o seu duplo desejo 
tentaram atravessar 
a cortina de Deus 
e conseguiram-no por um instante, 
embora Deus 
na Sua perversidade 
desate o nó. 

H


Sei que dez anos nos separam de pedras 
e raízes nos ouvidos 

e ver-te, ó menina do quarto vermelho, 
era ver a tua bondade, o teu olhar terno 
de Borboleta no Infinito 

e toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço 
em que tu eras uma estrela que caiu 
e incendiou a terra 

lá longe numa fonte cheia de fogos-fátuos. 

António Maria Lisboa, in "Ossóptico e Outros Poemas" 



História pouco digna de um boletim clínico



Ontem pediu comprimidos para dormir ao seu pneumologista.
Ele perguntou-lhe, se tinha algum problema, se já tinha tomado alguma vez. Disse-lhe que não, nada em especial, o que era verdade. Que já havia vinte anos que não conseguia dormir e que havia noites em que sonhava a noite inteira. Tal não tinha coincidido com qualquer acontecimento especial. Pareceu-lhe agora que vinte anos, talvez seja demais. 
Se isto for considerado doença, para além da asma, tinha outra que o incomodava particularmente, eram os gases, que se tem tornado, cada vez mais difícil de gerir, em família, em sociedade.
Referiu ao médico que considerava que o seu problema de flatuências, seria inato, pois tinha muito presente a recordação da sua avó, a protestar veemente as inconvenientes exortações de odores e sonoras do seu avô comerciante, ao que o mesmo alegava em sua defesa, com menos vergonha do que seria aconselhável. " Mulher, ninguém mos compra tenho que os dar".
No fundo o seu boletim clínico reduz-se a quatro problemas, muito interligados e socialmente desconfortáveis, que diga-se, não é coisa pouca. O controlo e a falta de ar e de sono, bem como o ressonar, digamos que o seu organismo vs metabolismo convivia mal com o ar que se respirava. Estava no entanto convencido, de que o problema era apenas seu, não seria do ar ou de alguma sociedade.

Lisboa, 1 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE (Mário Cesariny)





Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte      violar-nos      tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas      portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
     
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida      há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
     
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
     
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar