sábado, 30 de novembro de 2013

Pequenas história com um gato de permeio



A apanhar o sol
um gato no telhado,
dentro de casa
afiam-se-lhe as garras.

O gato corre
atrás do novelo
e agora, apanhar
o fio da meada!

O gato enrolado
dormita
sobre o sofá,
agita-se-lhe a cauda.

Entre as pernas
um gato amarelo
distende-se,
ela apenas sorri.

O gato mia
entre o pingo de água
da torneira,
tu espreguiças-te.

O bicho ronrona,
range a porta
na insónia
e olha por ti.

Aqui há gato,
explicar-te-á 
o jardim das sombras
mas que sabe ele
do beijo das estrelas  ?

Lisboa, 30 de Novembro de 2013
Carlos Vieira



Pintura de autor desconhecido

terça-feira, 26 de novembro de 2013

“E o Porto aqui tão perto”



I

Hoje acordo
e o Porto
sinuoso
insinuante
ali por perto
cidade
de recato
de recantos
com epiderme
de granito
e alma
maior
que o socalco.


“Ainda não deu hora nenhuma!" de Fernando Pessoa, pintura de Nadir Afonso

II

Espera-te
generosa
do tamanho
dos abraços
de todas
as suas pontes,
a gaiola
mágica
de S. Luís
replicando
pardais subtis
metálicos
e a dissonância
dos carris
e das viagens
virá depois
a da Arrábida,
emoldura
deslumbrados
salgueiros
acordeões
de neblina
inventam
o tango
no tráfego
das manhãs.


“Ponte de S. Luís” de Nadir Afonso

III

Entre ambas
espera-te
a silhueta discreta
o amante
improvável
no Cais da Ribeira
tu erecta
um pouco distante
luminosa
articulas
o inábil instante
quase ao de leve
brejeira
inclina-se o ciúme
do anúncio
Porto Sandeman
e as casas
para te ver passar
já demente
de braço dado.




“A cidade e os seres” de Nadir Afonso


IV

Espera-vos
à Alfândega
tira o pé
da embraiagem
tão inquietos
de tanto
contrabando
de desejos
a maresia
dos seus cabelos
desgrenhados
acentuando
a afogueada
transação de beijos
na Foz
a barra fechada
não resistiu
a um amor subversivo
a resvalar
no cabedal
do banco traseiro
e já ninguém vê nada
entre a lucidez
e a loucura
dos vidros embaciados.



“Os seres e a cidade” de Nadir Afonso

V

No peito
um diadema
de espuma 
no mar salgado
se digladia
e cresce o caudal
de todas as terras
das fragas
e brasões
que os viram passar
contra corrente
na margem
em cada
cave uma revolta
a decantar
a cor rubi
da volúpia
e um cálice
de poesia.





"O privilégio dos caminhos " de Nadir Afonso

VI

Espera-os
a cidade que recobra
a lucidez
e suavidade de gente
cúmplice
nos arredores do tempo
no refúgio
das linhas direitas
que se fez
inamovível
a bater nas rochas
a vida inteira
ouve-se murmurar
o seu olhar
insaciável
em Leça da Palmeira
arrefece
o gin
na Casa de Chá
enquanto esmorece
o frémito
das gaivotas
incendeia-se
o teu corpo
luzeiro
de uma noite
e de uma cidade
sem fim.



"A Gaivota" de Nadir Afonso


Lisboa, 25 de Novembro de 2013

Carlos Vieira

sábado, 23 de novembro de 2013

O teu sorriso




Não sei quantos poetas
falaram sobre o teu sorriso
não sei se eu próprio
alguma vez
sobre ele escrevi.
Sem estação
lembro-me dele
e de nenhuma
outra flor
do jardim.
Sei que
quando ele se apaga
um lento crepúsculo
irradia.
Oiço um clarim
sobre a paisagem
e dela emergem
fragmentos de filigrana
e beija-me
o carmesim
dos teus lábios.
Sei da sua permanência
no coração
em lume brando
sei que de mim
me esqueço.
O teu sorriso
sobrevoando
o mundo que anoitece
algures
entre o sândalo
e o jasmim
perfume
que não se esquece.
O teu sorriso
batendo as asas
desfolhando páginas
o epílogo
e o sem fim.

Lisboa, 23 de Novembro de 2013

Carlos Vieira


Bicicletas



Bicicletas
gosto delas assim
com duas rodas
e um selim
sem mãos
no guiador.
Depois pedalar
pedalar
a noite inteira
entre sonhos
de tocar
as estrelas
com as mãos sujas
de óleo
da roda cremalheira.

Lisboa, 23 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

                                            Imagem do filme de Jacques Tati, " Mon Velo"

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Desfruto



Foi
na outra semana
ia pela rua
uma mulher
aproximou-se
e sem qualquer razão
ofereceu-me uma romã
tanta semente
tanto pecado
e apenas recordo
no seu olhar
a pureza
de amêndoa.

Lisboa, 22 de Novembro de 2013
Carlos Vieira


            Petrus Christus – Retrato de Mulher, por volta de 1470, a óleo em madeira de carvalho


Meia dúzia de poemas à chuva


I

Chove em Lisboa
em silêncio
num esconso qualquer
onde a noite
de uma aranha
teceu o vazio.

II
A luz escorre agora
oleosa
cidade derramada
sobre o alcatrão
e o frio
breves reflexos
de vidas
 em direcção
à  sarjeta.

III
Na passadeira
foi atropelado um peão
dentro de casa
sei do piso escorregadio
distingo o grito estridente
o chiar dos pneus
um cheiro a ferodo
a voar
o chapéu de chuva
um sonho negro
e um corpo
mais morto do que vivo.

IV
Da varanda
cai um pingo de água
um inesperado calafrio.

V
Ergo um dique
A segurar um rio
e nesse laboriosa
tarefa
apelo a todas
as forças que me restam
e aquelas
que não tenho
e foi com essas que o dique
resistiu.


VI
Em Lisboa chovem
também
entre outras coisas
lágrimas de crocodilo
enquanto os retardatários
dão de beber à dor
vomita-se
metáforas medíocres
que sendo verdades
não resistem
às primeiras chuvas
é óbvio
que nem só
as guitarras choram em Lisboa
e que quem anda à chuva molha-se.

Lisboa, 22 de Novembro de 2013
Carlos Vieira

domingo, 17 de novembro de 2013

Murmurando



Murmúrio
de rios interiores
inventando
margens
e corredores
aflitos
em busca
da paz dos justos
desfazendo
mitos.

Murmúrio
de segredos
inconfessáveis
no ancestral
silêncio
arquivados
escutam-se
insondáveis
desígnios.

Murmúrio
do instável
equilíbrio
das palavras
que ficaram
por dizer
na dolorosa
indecisão
dos tímidos.


Murmúrio
de mães
inquietas na noite
a aguardar
com as mãos vazias
ao colo
o regresso
dos filhos
a qualquer forma
de amor.

Murmúrio
das batalhas
que se avizinham
em que todos
se ferem
ou morremos
um pouco

Murmúrio
agitado
do fim do mês
de sobressaltos
e do breve
interregno
da fome.

Murmúrio
de renovada
esperança
dos doentes
terminais
e dos outros
que já não
suportam
mais a dor.

Murmúrio
dos que iniciam
espinhosas
caminhadas
e do eco
dos seus passos
na areia
de um deserto
sem esperança
rumo
a um Mediterrâneo
qualquer.

Murmúrio
do estrépito
de todas as noites
de cristais
de todas as estrelas
que crescem
amarelas
nas lapelas
e da raiz do medo
que desce
pelo peito
e devora
os corações.

Lisboa, 17 de Novembro de 2013
Carlos Vieira