sexta-feira, 9 de março de 2012

A Rainha


Nomeei-te rainha.
Há maiores do que tu, maiores.
Há mais puras do que tu, mais puras.
Há mais belas do que tu, há mais belas.

Mas tu és a rainha.
...
Quando andas pelas ruas
ninguém te reconhece.
Ninguém vê a tua coroa de cristal, ninguém olha
a passadeira de ouro vermelho
que pisas quando passas,
a passadeira que não existe.

E quando surges
todos os rios se ouvem
no meu corpo,
sinos fazem estremecer o céu,
enche-se o mundo com um hino.

Só tu e eu,
só tu e eu, meu amor,
o ouvimos.

Pablo Neruda, in "Poemas de Amor de Pablo Neruda"

terça-feira, 6 de março de 2012

Aparição

Primeiro foste
o frémito de fulgor efémero
tentação fugaz
apenas página branca
murmúrio solto
depois do bálsamo
da palavra
que sulcando a tua anca
te desnuda
sob véus delicados de lume
gesto brando
que insinua o perfume
da húmida vegetação
no búzio envolto
da minha inquietação
teu refúgio
e do flamejante
membro ereto
de vertigem e ecos
fonte que vertia
lágrimas cintilantes
segredos
de noites vencidas
entre os sussurros
e os caracóis arquejantes
dos teus cabelos
minha árvore solitária  
na paisagem rasteira
a tua mão de pássaro
vai hesitante
interromper
o percurso de mel
nos teus lábios
não há sombra de pecado
apenas  sonhos suados
e o esplendor dos teus seios
na minha boca sequiosa
o teu coração
é um corcel a galope
na minha cabeça
na febre da tua pele
onde arde a dor
e a raiva intrépida
o veneno de um piano
de sangue quente
e o teu rumor salgado
meu amor de cal
da ingenuidade das casas
na derrocada
dos beijos prometidos
no abandono
da madrugada
onde adormeceste
desconhecendo
que eras para sempre.

Lisboa, 6 de Março de 2012
Carlos Vieira

El Greco: The Vision of Saint John

The Vision of Saint John, aka The Opening of the Fifth Seal (1608-1614), oil on canvas painting by El Greco, 222.3 cm x 193cm, located at the Metropolitan Museum of Art, New York City
The oil painting titled ‘The Vision of Saint John’, also known by such titles as ‘The Opening of the Fifth Seal’, ‘The Fifth Seal of the Apocalypse’ and ‘Profane Love’, is a large oil painting (2.22m x 1.93m) by El Greco (Domenikos Theotokopoulos, 1541-1614) currently in the Metropolitan Museum of Art, New York City.

The theme of the painting is Biblical, taken from the Book of Revelation (6:9-11). It features the naked souls of persecuted Christian martyrs receiving robes of salvation, and praying to God for justice upon their persecutors. The most dominant figure on the canvas is an agonistic St. John.

The painting is considered incomplete for various reasons (the Metropolitan Museum of Art says in its website, ‘top truncated’). It was the last and final work by El Greco, who painted it in the last years of his life, and, probably, he died before the painting could be completed. The upper section of the painting, which might have depicted Divine Love, appears cut off, and the bottom section as it exists now depicted Profane Love, according to art historians.

Original owner of the painting was the Spanish Prime Minister Antonio Cánovas del Castillo, after whose death in 1897, the painting was sold to the painter Ignacio Zuloaga. In 1956, the Metropolitan Museum of Art, New York City, bought it from the Zuloaga Museum.

According to art critics and writers, Opening of the Fifth Seal was the major inspiration for Pablo Picasso’s early Cubist works, especially the oil painting ‘Les Demoiselles d’Avignon’, which is said to reflect the expressionistic angularity in this El Greco painting. While Picasso was working on Les Demoiselles d’Avignon, he visited the studio of Ignacio Zuloaga, and studied Opening of the Fifth Seal in detail.

El Greco, who in the early days of his career adopted elements of Mannerism and Venetian Renaissance in his painting style, later left all the established concepts of art. As a result, he developed a style of his own with disproportional, elongated lean human figures, giving more importance to grace and color than to form, and employed the effective use of light and shades in his paintings.

El Greco painted in a typical expressionistic style that found not much of appreciation during his times, but he was re-discovered in the early 20th century. El Greco is now regarded as the initiator of the later trends of both Expressionism and Cubism, and according to scholars of art, he belonged to no conventional school of art.

domingo, 4 de março de 2012

Stephane Grappelli & Michel Petrucciani - Misty

Esboço perdido de um sonho


o poema é  janela e porta ou ângulo morto de esquina

varanda vespertina e inquieta e solidão habitável

rua deserta na sombra de um homem

levantar os muros e os poemas salpicados de sangue
do ricochete dos projécteis e da defesa das ideias
“graffitis” da liberdade e outras incivilidades

fazer betoneiras de versos e de cimento e tijolo a tijolo
poder edificar outro espaço e tempo a tiracolo
na resistência das construções clandestinas

fazer que pairem por instantes interjeições na grua
a morte da metáfora no acidente de trabalho
a encher de ruidoso silêncio os alicerces

ligar uma cirúrgica malha de estrofes e betão armado
depois sobre a laje dançar o incêndio de um tango
à volta do poema pilar e tronco que não cede

desenhar o caminho como quem observa um filho
que começa a atravessar o tráfego da vida
balbuciando a primeira palavra da poesia


depois deixar que fiquem bem secas as sílabas
e abandonar as rimas à solta no poema
inalar e beber as suas tintas

subir a pulso os andaimes e descer nas roldanas dos versos
no instável equilíbrio do sentido
ousar o golpe de asa

abrir a torneira e deixar que se liberte a inspiração
palavra a palavra ir moldando
a abóbada e a cisterna

ajustar a madeira de cofragens e adjectivos graves
de suor e de paciência bem escorados
bem tensa a subtileza do arco


grandes são as superfícies e altos os pés direitos
a poesia será desassombrada
cruzada de correntes de ar

segurar nas pedras rústicas e nas palavras e limpá-las
acariciá-las escolhendo a sua face mais tranquila
na evocação da dor dar-lhe a beleza possível

ficar debruçado no peitoril de cantaria de outros cantos
onde se pode erguer a persiana e o discurso amoroso
onde se esconde o olhar


lanço o texto como quem ergue uma ponte entre margens
e nos esticadores côncavos das figuras de estilo
acendem-se a obra de arte e os candeeiros


neste cálculo da resistência dos materiais aos tremores

de terra e à catástrofe dos sentimentos
o poema deve possuir nervos de aço

depois espalhar pela poesia pela casa pela cidade a terna mobília

das mesas e cadeiras e camas inúteis de gente com fome
por dentro e antes do amor
o poeta  elabora as plantas onde sangra e cuida o seu coração
onde distingues a arquitectura dos mundos que constrói
em cada verso o jejum e o sonho de Afonso Domingues


Lisboa, 22 de Março de 2012
Carlos Vieira

                                                    “the dictator’s architect” Harold Davies


sábado, 3 de março de 2012

Live: Arild Andersen, Tommy Smith, Paolo Vinaccia

O mistério da estrada de Sintra, Eça de Queirós

Eça que é Eça, antes dos exames de DNA, da utópsia pesicológica, dos especialistas em crimes passionais e do IC19...

"Contei-lhe ontem como inesperadamente havia encontrado à cabeceira da cama um cabelo louro. Prolongou-se a minha dolorosa surpresa. Aquele cabelo luminoso, languidamente enrolado, quase casto, era o indício de um assassinato, de uma cumplicidade pelo menos. Esqueci-me em longas conjecturas, olhando, imóvel, aquele cabelo perdido.
A pessoa a quem ele pertencia era loura, clara, decerto, pequena, mignonne, porque o fio de cabelo era delgadissímo, extraordinariamente puro, e a sua raiz branca parecia prender-se aos tegumentos cranianos, por uma ligação ténue, delicadamente organizada.
O carácter dessa pessoa devia ser doce, humilde, dedicado e amante, porque o cabelo não tinha ao contacto aquela aspereza cortante que oferecem os cabelos pertencentes a pessoas de temperamento violento, altivo e egoísta.
Devia ter gostos simples, elegantemente modestos a dona de tal cabelo, já pelo imperceptível perfume dele, já porque não tinha vestígios de ter sido frisado, ou caprichosamente enrolado, domado em penteados fantasiosos.
Terá talvez sido educada em Inglaterra ou na Alemanha, porque o cabelo denotava na sua extremidade ter sido espontado, hábito das mulheres do Norte, completamente estranho às meridionais, que abandonam os seus cabelos à abundante espessura natural.
Isto eram apenas conjecturas, deduções da fantasia, que nem contituem uma verdade científica, nem uma prova judicial.
Esta mulher, que eu reconstruia assim pelo exame de um cabelo, e que aparecia doce, simples, distinta, finalmente educada, como poderia ter sido o protagonista cheio de astúcia daquela oculta tragédia? Mas conhecemos nós poventura, a secreta lógica das paixões."
O mistério da estrada de Sintra, Eça de Queirós