sábado, 25 de janeiro de 2014

O pescador...

O pescador
lança a linha 
no meio do lago,
a carpa é hoje
o seu sonho
mais profundo.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Eis-me aqui...

Eis-me aqui 
no caiaque rio abaixo
envolto nas águas revoltas,
um deus
que emerge das águas
um homem que desce
aos infernos.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

A força da corrente...


A força da corrente 
torna a piroga mais instável
como na vida,
mais abaixo poderei colher 
a lentidão das flores e os frutos
que pendem sobre o espelho de água
e sobre a vida.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Deito-me ao comprido...

Deito-me ao comprido na piroga
a vida e a morte 
podem ser apenas isto
eu, as nuvens e o céu.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Ali vou eu...

Ali vou eu
erecto sobre a piroga
com a pagaia 
ofendo a alegria da água
e respiro.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

Piroga...

Piroga
rasga o espelho de água
da lagoa azul e vence a nudez.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2014
Carlos Vieira

O poeta e o cão

XIII

INTERIOR DE UMA mansarda. O POETA, deitado no catre, medita de olhos semicerrados. Na única cadeira existente, o CÃO. Atrás da porta está pendurada uma gaiola e, dentro da gaiola, o canário enlanguesce. É absolutamente necessário que o pássaro não dê nem um trinado durante todo o tempo que dure este primeiro, único e brevíssimo acto, pelo que se recomenda a utilização de um canário embalsamado ou de pano.

CÃO – Ouve.
POETA – (Sem mudar de posição.) O que é?
CÃO – Tenho fome.
POETA – Eu também, mas não penso nisso.
CÃO – E os ossos de ontem?
POETA – Foram-se.
CÃO – Sozinhos?
POETA – Sozinhos.
CÃO – Como foi isso?
POETA – Foi esta manhã, quando estavas na rua. O miúdo da porteira pôs-se a tocar o seu tambor de folha. Então os ossos levantaram-se e foram-se embora a desfilar três a três.
CÃO – Seriam ossos de soldados.
POETA – Foi precisamente isso que pensei. Não há muito tempo, parece-me, houve uma guerra.

Silêncio. O CÃO volta a apoiar a cabeça entre as patas e o POETA suspira profundamente.

Javier Tomeo
Histórias mínimas
Tradução de Maria Dulce Teles de Menezes e Salvato Teles de Menezes
Livros Horizonte, 1992

Oferecido por Rui Almeida.