quarta-feira, 27 de março de 2013

A furgoneta do meu avô I




A memória
de uma furgoneta
verde petróleo
que subia em primeira
aquela encosta
de barro vermelho
aos ziguezagues
na estrada de alcatrão
o súbito despiste
a colisão contra a oliveira
na berma
eterna e impávida
que não ocorreu por um triz
seguiu-se
uma revoada de pássaros
ferindo a tarde de silêncio
nódoa negra no céu azul
o condutor e o pendura
saíram ilesos
de mãos na cabeça
a furgoneta verde petróleo
esfumou-se
do radiador da infância
a vida a ferver
em circuito fechado
após o vulgar incidente
na memória
a todos salvo agora
por milagre.

Lisboa, 27 de Março de 2013
Carlos Vieira

domingo, 24 de março de 2013

Era uma vez o tempo de vida



Fica por ali imóvel

admirando as congeminações do tempo que corre

dá-lhe corda.

O tempo é como a corrente do rio

é esse lugar comum de ficar em cima da ponte em transe

a vê-lo passar ou se morde o isco.

Nesse entretanto

cresce a sua dor e avista o avião comercial que se aproxima

será dentro de pouco tempo o barulho dos seus motores ensurdecedor.

Aguarda agora paciente a sua vez

naqueles propósitos e no seu comportamento exemplar

nem parece um rapaz deste tempo.

Espreita para a esquerda da estação

a melancolia dos carris estende-se sem se encontrar até ao infinito

o tempo do comboio não é o seu.

Vai devagar

aparentemente, terá muito tempo

ninguém lhe poderá dizer qual o tempo que lhe pertence. 

Pode ter vindo da guerra

pela forma furtiva de se deslocar

no compasso de espera deflagra o solitário ricochete de um olhar.

Não se precipita

deixa que as coisas aconteçam pois o que tem demais é tempo

e o desespero, no dilema de o perder ou de saber esperar.

Até ao crepúsculo na sua timidez vive escondido

agora vai ser a hora dos lobos

e a sua que envergonhadamente lhe veste a pele.

Haveria de chegar à sua altura

do sol brilhar e da colheita dos frutos

não contou porém de que apenas a morte, o tempo nos dá como certa.

Sai de casa e corre mas perde o autocarro

na sua cabeça mil e uma tarefas e assuntos se acotovelam

perde contra o cronómetro, a multidão e os lugares, ele é o seu contratempo.

Esperava sentado no banco do jardim

apagaram-se os risos das crianças, a solidão dos velhos decorados de flores

ficou ali à sua espera com a noite e a lua, ela odiava que se atrasasse aos encontros.

Foi apenas um instante de lucidez, sem pestanejar

e saltou para o precipício e acendeu um sorriso

saltou para dentro do tempo que ali ninguém o iria procurar para o prender.

O passageiro do tempo

não tem nem rugas, cabelos brancos, nem silêncios amadurecidos

em êxtase olha a paisagem, quem está de viagem na vida nunca morre, será que existe?

Pesa na sua memória  a pedra de calcário

relógio de sol e altar no horizonte que lhe oferecia o amanhecer

depois da clepsidra esvaziar as longas noites da infância.

Olhava-te como se nada mais existisse

as palavras, o movimento dos seus gestos definiam as estações, a noite e o dia

e se abraçasse o seu corpo o tempo possuía.

Lisboa, 24 de Março de 2013

Carlos Vieira


                                             Imagem de autor desconhecido

quinta-feira, 21 de março de 2013

Indícios e inquietações e esboços




Reencontro-te
porque vais tocando o solo como se fosses um anjo
nos vestígios quase impercetíveis de rastos e de antigos caminhos
que as areias do deserto e do esquecimento quase apagaram
descortino no teu vestido caído
o peso subtil da porcelana do teu corpo
teus pés de fogo fazem crepitar as folhas caídas
e entras sem pedir licença por mim a dentro
no meu peito despertas o labor paciente de um rumor de bichos
que ruminam ervas à volta de um inefável sentimento
e vejo-te no espelho com olhos de admirar as ruínas da terra
cegos de espanto e do húmus para o início das flores e dos frutos
os  pássaros tecem segredos e ninhos num afeto de lama e argila
podia ter um cão que pudesse farejar
tão perto e tão longe a lâmina  fria da palavra murmurada
depois se perdesse também por ti no arvoredo
no seu instinto todos somos animais
e todos selvagens
presos ao silêncio dos pensamentos mais puros
onde um a um vamos beber à nascente
cansados  de tanto desbravar caminho
agora podia adivinhar o teu perfume esplêndido
um mistério prestes a desfazer-se
de mar fustigando a rocha
de inseto que acabou de pousar no princípio do mundo
e de palavras que te queria dizer presas na garganta
o teu nome na minha voz fulminante que atravessa a árvore
como se fosse um raio de sol vencendo a penumbra
para beijar a ténue corola da tua pele expectante
e para que possas voltar
e vislumbrar a calma enseada do meu ombro
onde te abrigavas.

Lisboa, 21 de Março de 2013
Carlos Vieira




segunda-feira, 18 de março de 2013

Intramuros




no muro de arestas vivas
um tufo de flor é a sombra perturbada
de uma breve coroa de espinhos que amadurece

no muro a sub-reptícia lagartixa
devora a pedra e uma ilha de musgo verde
a camisa branca desfraldada de Goya porém permanece

no muro a súplica de uma janela
o desespero sitiado dos miseráveis e foragidos
derradeira cintilação de asas ou da lucidez de um lenço que escurece

no muro branco do nosso calabouço
aceso dos riscos para os dias e das grades para as noites
é a fronteira da liberdade e o arame farpado dentro dos homens que cresce  

Lisboa, 18 de Março de 2013
Carlos Vieira



                                          "The Wall"  Pink Floyd

sábado, 16 de março de 2013

Perplexidades




Já há alguns dias que vivo nas margens deste rio
No prodígio da nascente que cresce dentro de mim
O que me leva sempre para os lugares da infância?
Cerca-me esta existência de pântano e de sossego
Esta identidade civil de visco do medo e do vazio
Escrever com orvalho um tempo de horta e de jardim
Percorrer aí, de lés a lés a madrugada, a subtil distância
na noite e neblina onde resisto e viajo na luz e fico cego.

Lisboa, 16 de Março de 2013
Carlos Vieira

sexta-feira, 15 de março de 2013

Reflexos tímidos de rouxinol

Reflexos tímidos de rouxinol
Lâminas rasgando o espelho de água
Imperturbável é a ternura das amoras suspensas

Lisboa, 15 de Março de 2015
Carlos Vieira

O rouxinol acende e apaga a lua ou o salgueiro?...

o rouxinol acende e apaga a lua ou o salgueiro?
oiço o teu coração na sombra
se o rio correr à noite apenas se ouvirá a rã

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2015
Carlos Vieira