domingo, 28 de agosto de 2016
Arrábida: entre o tempo e a eternidade de Viriato Soromenho Marques (DN)
"A Arrábida é um dos territórios nacionais com maior presença simbólica na consciência coletiva..." Viriato Soromenho Marques
Sebastião da Gama: "Ausentei-me de aqui, de corpo e alma/ diluí-me na paisagem/ e a rocha ficou vazia/ com ar, só ar /com ar, só ar, em cima dela/ Ora, porque será que estou ainda a vê-la/ a Tarde/ porque será que a vejo como, de cima do rochedo, a via/ se eu afinal já sou ela?" (Inédito de 20.07.1944).
Histórias breves da guerrilha III
Era uma madrugada de verão, julho talvez, algures no século passado. desde o princípio da noite circundavam o sopé dos pequenos montes. tinham-lhe trocado as voltas pouca gente sabia porque o faziam. uma neblina filtrava as corolas pendentes dos arbustos nos estreitos caminhos e deixava-nos encharcados. pesavam-lhe as mochilas verde tropa, onde se aconchegavam rações de combate, acendalhas, primeiros socorros. pequenas ferramentas para a vida e para morte e todo o tempo para limpar armas. as armas ao colo eram crianças preparadas como nós para o fogo na alma do cano e do corpo. na abordagem a cada arbusto treinavam a guerra e não é mesma coisa. por isso havia tempo para os ângulos mortos da paisagem. as aves e os animais eram verdadeiramente os únicos incomodados nas emboscadas. ainda bem que tendo ido à tropa nunca fui à guerra e isso faz toda a diferença, para mal e para o bem e para o lusco-fusco.
Lisboa, 22 de Agosto de 2016
Carlos Vieira
Carlos Vieira
Histórias breves da guerrilha II
junto
ao silvado bravo
é também o soldado
agachado
na emboscada
medonha da noite
indiferente
devora o melro
a negra amora
e o rapaz sonha
voltar à retaguarda
ao trilho de uma paz
proclamada
e acaricia a coronha
da espingarda
dedo nervoso
no gatilho
ao silvado bravo
é também o soldado
agachado
na emboscada
medonha da noite
indiferente
devora o melro
a negra amora
e o rapaz sonha
voltar à retaguarda
ao trilho de uma paz
proclamada
e acaricia a coronha
da espingarda
dedo nervoso
no gatilho
Lisboa, 21 de Agosto de 2016
Histórias breves de guerrilha I
Acordou
estremunhado
saiu da tenda
e o luar
iluminava
o ouro infinito
das dunas
e ocultadas
pela penumbra
das mesmas
sobre o silêncio
do deserto
e a profícua
solidão noturna
erguiam-se
certamente
fatídicas
cimitarras
e talvez o tumulto
do sangue
após
a eloquência
que pode ser
a memória
de um beijo
ou o prenúncio
de doces tâmaras
sob a elegância
curvilínea
das palmeiras
o seu coração
estremeceu
perante
a longínqua
nuvem de pó
e no impercetível
desvanecer
das estrelas
ouviu-se um tropel
no pensamento
no entanto
adormeceu de novo
a sono solto
revolto voltou
ao esquecimento
dos desesperados
e quando
lhe bateram
à porta
não se surpreendeu
ao encarar
os pobres soldados
ávidos
do saque prometido
aqueles
na sua infinita
misericórdia
abateram-no
de um só tiro
e deixaram-no
em paz.
estremunhado
saiu da tenda
e o luar
iluminava
o ouro infinito
das dunas
e ocultadas
pela penumbra
das mesmas
sobre o silêncio
do deserto
e a profícua
solidão noturna
erguiam-se
certamente
fatídicas
cimitarras
e talvez o tumulto
do sangue
após
a eloquência
que pode ser
a memória
de um beijo
ou o prenúncio
de doces tâmaras
sob a elegância
curvilínea
das palmeiras
o seu coração
estremeceu
perante
a longínqua
nuvem de pó
e no impercetível
desvanecer
das estrelas
ouviu-se um tropel
no pensamento
no entanto
adormeceu de novo
a sono solto
revolto voltou
ao esquecimento
dos desesperados
e quando
lhe bateram
à porta
não se surpreendeu
ao encarar
os pobres soldados
ávidos
do saque prometido
aqueles
na sua infinita
misericórdia
abateram-no
de um só tiro
e deixaram-no
em paz.
Anton Tchekov, "A Mulher do boticário"
O lugarejo de B.., formado por duas ou três ruazinhas tortas, dorme seu sono pesado. No ar espesso o silêncio é total. Ouve-se apenas, ao longe, fora dos limites da cidade, o latido ardido e líquido de um cão que aos poucos enrouquece. É quase o amanhecer.
Há muito tempo que tudo está dormindo. A única que não dorme é a jovem mulher do boticário Tchornomordik, proprietário da farmácia de B… Já tentou deitar-se três vezes, mas, não sabe por quê, o sono teima em não querer chegar. Sentada, a janela aberta, veste apenas uma camisola e olha para a rua. Sente calor, tédio, desgosto. Tanto desgosto que lhe dá até vontade de chorar; de novo, não sabe por quê. Sente um nó no peito que de repente lhe chega a garganta… Poucos passos atrás dela, colado à parede, dorme Tchornomordik e ronca baixinho. Uma pulga esfomeada suga-o a raiz do nariz, mas ele não percebe e até sorri, pois está sonhando que todos na cidade estão com tosse e compram dele, interminavelmente, as gotas do rei da Dinamarca. Nenhuma picada poderia acordá-lo agora, nem um canhão, nem uma carícia.
Há muito tempo que tudo está dormindo. A única que não dorme é a jovem mulher do boticário Tchornomordik, proprietário da farmácia de B… Já tentou deitar-se três vezes, mas, não sabe por quê, o sono teima em não querer chegar. Sentada, a janela aberta, veste apenas uma camisola e olha para a rua. Sente calor, tédio, desgosto. Tanto desgosto que lhe dá até vontade de chorar; de novo, não sabe por quê. Sente um nó no peito que de repente lhe chega a garganta… Poucos passos atrás dela, colado à parede, dorme Tchornomordik e ronca baixinho. Uma pulga esfomeada suga-o a raiz do nariz, mas ele não percebe e até sorri, pois está sonhando que todos na cidade estão com tosse e compram dele, interminavelmente, as gotas do rei da Dinamarca. Nenhuma picada poderia acordá-lo agora, nem um canhão, nem uma carícia.
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