quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Memórias de Verão I

Memórias de Verão I
Foi numa noite de final de junho, ainda vinha até mim o murmúrio das conversas nas esplanadas misturando-se
com o estrugir das marés ao fundo, a maresia e o perfume dos cafés produziam uma estranha excitação o reencontro da melancolia estival. Estava cansado resolvi ir dormir.
Porque depois suceder-se-ia o passeio nocturno na marginal, de um lado, os automóveis ruminando de mansinho, os namorados de mãos dadas com promessas vagas, as famílias a lamberem colectivamente gelados de cone de baunilha e chocolate e conversas desinteressantes e despreocupadas, do outro lado, a brisa marítima e a areia molhada, haveria matizes de azul conforme havia lua ou era varrido o mar pelo farol, nos olhares sorriam romances de espuma e em silêncio engendravam-se projectos de tudo ou nada com filas de barracas brancas vazias.
Nessa altura acordei estremunhado, com o ruído dos bombeiros a entrarem pela janela, tinha-me esquecido da porta fechada com a chave por dentro como nos sonhos, junto à minha cama, ouvi uma voz feminina surpreendida de anjo com capacete que comentava:
"- Mas o seu filho já é tão grande!"
Lisboa, 13 de junho de 2016
Carlos Vieira

ACRESCENTA ISTO À RETÓRICA


Posa, posa e posa.
Mas na natureza apenas
Cresce. As pedras posam
Ao cair da noite, e os mendigos
Quando dormem também
Posam com seus trapos.
Bolas... cai o luar de lavanda.
Os prédios posam no céu
E, quando pintas, as nuvens,
Grisalhas, peroladas, profundas,
Pftt... No modo como falas
Arranjas, a coisa posa, o que
Na natureza apenas cresce.
Amanhã, quando o sol,
Apesar de tuas imagens,
Retornar como sol, fogaréu,
Tuas imagens não terão
Deixado nem sombra
Do que foram. As poses
Do discurso, da pintura,
Da música – o corpo dela jaz
Exausto, seu braço cai,
Seus dedos tocam o chão.
Acima dela, à esquerda,
Um toque de branco, o obscuro,
A lua sem forma,
Um olho debruado numa cripta.
O sentido cria a pose.
Nisso, se move e fala.
Esta é a figura, e não
Uma metáfora esquiva.
Acrescenta isto.
É para acrescentar.

O fiasco


que o fiasco
seja apenas o momento triste
de um reencontro
com a nossa frágil condição
e da beleza
que existe escondida
na perspetiva
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira

Um lince de papel


De súbito
um salto felino
dos caracteres dos jornais
numa breve
o reflexo de um avistamento
a distância em silêncio percorrida
surge-nos na densa mata
das notícias
ao mudar de página
e nela desaparece
entre imagens de destroços
de um morteiro na Síria
o fogo da sombra sarapintada
no lince da serra da Malcata
preenche de espanto
dos apartamentos
de animais domésticos
e homens mansos e dos outros
em vias de extinção
e devora a boa consciência
das manchetes
Lisboa, 11 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Ella Fitzgerald - Between The Devil & The Deep Blue Sea (Verve Records 1961)



I don't want you
But I hate to lose you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea
I forgive you
'Cause I can't forget you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea
I ought to cross you off my list
But when you come knocking at my door
Fate seems to give my heart a twist
And I come running back for more
I should hate you
But I guess I love you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea
I ought to cross you off my list
But when you come knocking at my door
Fate seems to give my heart a twist
And I come running back for more
I should hate you
But I guess I love you
You've got me in between
The devil and the deep blue sea






O mar dos meus olhos


Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes...
e calma
Sophia de Mello Breyner Andresen (Porto, 6/11/1919 – Lisboa, 2/7/2004)

Memória dos amores de Verão


O cerzir do véu
do olhar
temperado
por um solfejo
de espuma
essa fragância
da maresia
que se escondia
no sabor
das partículas
do seu corpo
eram também
a breve memória
da resplandecente
constelação
de um amor inominável
e fecundo

do marejar nas noites
de insónia
a infinita solidão
lançadas ao mar
as cinzas
do seu mundo
Lisboa, 10 de Junho de 2016
Carlos Vieira


Nu Azul - Picasso