domingo, 21 de agosto de 2016

Uma andorinha...

uma andorinha na manhã
dá cambalhotas de asas molhadas
onde irá cair?
Loures, 12 de Maio de 2014
Carlos Vieira

Fado Loucura - Ana Moura


Delação


Enquanto dou o despacho
vespertino
absolutamente neutro
“Visto.
Prossiga.”
desce pela chaminé
da lareira
no arrulhar da rola
um incandescente
segredo
a caneta sucumbe
sob a secretária
do aparo
aspiro o aroma
familiar
de tinta permanente
de um azul inquisidor
no murmúrio
menos abundante
da chuva de primavera
sou um espectador cego
perante o silencioso
desabrochar
glorioso da flor
e enlouquece-me
na seiva
o seu secreto rumor.
Loures, 13 de Maio de 2016
Carlos Vieira

O vazio desenhava desde sempre


O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto
Todas as coisas serviram para nos ensinar
ardente perfeição da tua ausência
Sophia de Mello Breyner Andresen

Napalm


Hoje pensei em napalm
naqueles campos de infância
de búfalos e de gazelas
que há muitos anos se cobriram
de fogo e de cinza
e penso naqueles que hoje
ainda padecem de insónia
e das queimaduras de 1º grau
e todos os que ficaram de vigília
a zelar por um inútil rescaldo
reacenderam-se do nada
no pensamento.
Lisboa, 11 de Maio de 2016
Carlos Vieira

Diário do discreto cidadão


Fazia tudo
com muita reserva
não gostava de dar nas vistas
e tal era muitas vezes confundido com timidez
no entanto a sua vida sempre se alicerçou
na ousadia e na coragem silenciosa
no gesto subtil de misericórdia e não na astúcia
não no ardil sibilino mas na delicada atenção
nessa discreta generosidade
sopesava que fosse mínima a presença
que a sua sombra não o denunciasse
inventava a ausência em cada passo
era meticuloso e não descuidado
sem pisar ninguém deixava que a sua palavra
se espraiasse luminosa como o ar
que se respira com ela criava abrigos
para os que fugiam das tempestades
acendendo um farol de rara lucidez
sem que se pusesse em bicos de pés
do seu olhar deprendia-se uma alegria contagiante
e uma tábua de salvação
adivinhava-se uma serenidade nunca resignada
com uma pincelada de tristeza solidária
saía com a mesma discrição
de quem entrara e sem deixar rasto
que se notasse ou vazio inquietante
apenas um perfume de inequívoco bom senso
ninguém se apercebera que se quebrara
a completetude do círculo ou que a corrente de ar
pudesse perturbar aquela consertação
das solidões e vacuidade ali reunidas.
Lisboa, 8 de Maio de 2016
Carlos Vieira


Homem em Azul, Pablo Picasso

Aguarda no carro...

Aguarda no carro
alguém que tarda
a chuva cai inclemente
é como se tivesse
dentro de um piano
onde a música
no exterior
é de água e metal
de vidro e isolamento
e uma flor ao volante
Lisboa, 7 de Maio de 2016
Carlos Vieira