sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Volta


Volta outras vezes e domina-me,
frêmito amado, volta outras vezes e domina-me –
quando a memória do corpo despertar,
quando ao sangue retornar o desejo de outrora
e os lábios e a pele lembrarem e as mãos
sentirem-se como que tocadas de novo.
Volta outras vezes e domina-me, quando a noite
fizer com que os lábios e a pele se lembrem.
Konstantinos Kaváfis
(In: PAES, José Paulo. (org.: seleção, tradução direta do grego, prefácio, textos críticos e notas). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986).

Lá fora...

lá fora
uma algazarra
ou dentro de mim
não sei
fui saltar ao eixo
e jogar à apanhada
no recreio da escola
só esse intervalo
me garante
a lucidez das palavras
e a certeza das contas
Lisboa, 29 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Um dia de férias comigo mesmo


Meti um dia de férias
e não sei porque o meti
e a quem interessa este assunto afinal?
um funcionário burocrata
manga de alpaca
que faz um intervalo no despacho
um átomo às voltas na galáxia
acontece
que não tinha nada de especial
nada pendente
não foi porque estava muito cansado
nem sei se já nasci assim
o que é um facto
é que estou cada vez mais cansado
preciso tirar férias
deste meu mundo hipotecado
não que alguém tenha culpa
tenho de tirar férias da minha culpa
das noites se confundirem com os dias
chegou momento em que contabilizamos
aquilo que deixamos por fazer
tanta coisa
sempre tive dificuldade em estabelecer prioridades
primeiro porque penso que tudo é prioritário
depois porque desvalorizo ou menosprezo
e tanta coisa se acumula
vivemos aquilo
que tanta gente considera muito importante
e nós onde nos perdemos de nós?
sento-me aqui
à espera que me apareça uma ideia
que venha ter comigo
como aqueles lavradores de pelo macio e tão dóceis
que vem lamber as mãos dos donos
estranho ocaso neste dia de férias
não me apetece ler
como costume
livros esquecidos na última prateleira da estante
e que um dia jurei ler
ouvir música clássica
nem ver um filme “noir” dos anos cinquenta
nem passear ou ir a um museu
essa coisas para as quais a normalidade nos impele
hoje não estou no mercado
e eu não sou eu
estou hoje disponível para essa coisas
classificadas de desinteressantes
gosto deste mundo
que vive na sombra
nos bastidores
onde apenas nós podemos entrar
entre o sofá e o nada
existe aquela almofada caída
e uma razoável falta de chá
vai ficando lassa essa corda que vibrava
e que dava outra emoção ao gesto
e um brilho único a um olhar
tudo enferruja ou se estraga
perante as intempéries e a falta de uso
hoje longinquamente uma vozes
na rádio sintonizada
a dizerem que gostam mais de bolos que de sexo
e dos tolos e dos fracos não reza a história
não tenho nenhum animal
no meu quotidiano
só a minha máquina de secar roupa
tem um estranho latido
qua acaba num ruído infernal
interpela-me perante a minha incapacidade
desses pequenos trabalhos
de reparação doméstica
de reparação de mim e dos outros
apenas consigo mudar um fusível
e usar uma chave e distinguir
um parafuso com cabeça de estrela
nunca fui bom de mão
que merda esta minha lassidão
de estar na sala de espera
da eternidade
quando ainda tanta coisa na vida nos convoca
confronto-me com a televisão
que uso desligada
e onde se reflete
a minha vida cinzenta
tanto esforço e sofrimento
para esta sensação mais frequente
de tão pouco prazer
felizes são os sado-masoquistas
deixam-nos ir
perdemos-nos nesse oceano
de inutilidade à deriva e do grande gesto fútil
que num certo momento
não soubemos
podemos evitar
não tenho a certeza se for por isso
que marquei este dia de férias
de qualquer forma já de poucas coisas tenho a certeza
um curto circuito nessa vida
de todos os dias
obrigou-me
a voltar para dentro de mim
e assim voltar a ocupar-me dos outros
pessoas de carne e osso
e coração
e não apenas essas sombras que convivem
com nossa sombra
sorrir sem ser por adereço
abandonar esses gestos a fingir
de voluntário e de boa pessoa
e de que é tudo boa gente
sem pecado
todos de humanidade à prova de bala
que raio hoje vou deixar-me vencer
e assim derrotar a máquina
que me canta as tretas açucaradas
da disponibilidade vinte e quatro horas
vou deixar de ter esse espírito
meticuloso e sagaz de detetar o erro
da iniciativa
estou farto de criar e dar novos mundos ao mundo
e "que ninguém me dê conselhos"
esgotou-se a minha capacidade de sofrimento
e isso que agora exponencia
como um qualidade superlativa
a resiliência
essa fantástica maravilha que é a assertividade
deixem-me a sós
com as minhas inqualificáveis
e saborosas fraquezas
tirei um dia para descansar
do mundo
ser inesperadamente associal
de ser o anti herói livre
e de servir para pouco
e ninguém servir.
Lisboa, 29 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Poema patra um herói ocasional


Nadou, nadou, nadou
e chegou, exausto
mas chegou
a esse mundo novo
e ocidental
e abraçou
a estátua da liberdade
ela de olhar
cheio de névoa
ele nunca se soube se chorava
se lhe ardiam os olhos
do sal.
Lisboa, 29 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Ver um mundo em um grão de areia...

“Ver um mundo em um grão de areia 
e um céu numa flor selvagem 
é ter o infinito na palma da mão 
e a eternidade em uma hora.” 
― William Blake

Liberdade I


Naquele dia
as janelas e as portas
estavam abertas de par em par
minha mãe limpava a casa
corria uma corrente de ar
a minha idade
eram catorze anos
uma estranha utopia
a que chamaram
liberdade
era anunciada
na velha telefonia.
Lisboa, 25 de Abril de 2016
Carlos Vieira

Liberdade V


Revela o poema
essa singular contradição
em que se alcança a liberdade 
no limite do silêncio
na usura da contenção.
Lisboa,25 de Abril de 2016
Carlos Vieira